A Arte Francesa da Guerra (Jenni): três impressões

Em A Arte Francesa da Guerra, romance de 2011 do francês Alexis Jenni, o narrador se oferece pra reescrever as memórias do ex-soldado Victorien Salagnon em troca de aulas de pintura. Depois de um certo número de aulas — e depois que o Salagnon já contou suas histórias na 2a. Guerra, na Argélia, na Indochina — o narrador pergunta pro seu tutor o que eles vão pintar naquele encontro. A resposta: nada — você vai pintar, só isso.

O que o aluno aprendeu naquela aula foi, segundo o mesmo, a lição mais importante de todas: até aquele momento, ele sempre procurava algum objeto pra pintar; se não lhe diziam qual, ele mesmo procurava algum que servisse, o que muitas vezes não dava resultado, e nada de pintura também. O ex-soldado disse simplesmente pra pintar qualquer coisa: árvores, pedras, reais, imaginárias, não importava — é o que os chineses fazem há séculos, pintando sempre as mesmas pedras inexistentes, as mesmas plantas inexistentes… Não é nem questão de escolha de objeto, basta decidir pintar, e daí pintar.

Eu vejo nessa interação entre o narrador e o Salagnon uma lição que se estende a outros ofícios, outras artes. De vez em quando vejo autores dando conselhos àqueles que querem seguir essa carreira — me vem à cabeça de imediato o que o E.L. Doctorow disse, que planejar escrever, rascunhar, pesquisar, falar a respeito, nada disso é escrever, só escrever é, de fato, escrever. E acho que esse aviso do Doctorow combina bem com a lição do Salagnon: alguém poderia dizer, OK, só escrever é escrever mesmo, mas escrever o quê? A verdade é que não importa, o que importa é escrever.

*****

Pessoas bastante religiosas, ou pelo menos que acreditam firmemente em Deus, dispõem de uma facilidade que o resto da população não tem, que é aquela solução simples pra explicar fenômenos sem relação causa-efeito nítida: Foi Deus que me disse pra chutar na bola desse jeito, Foi Deus que me fez ganhar tantas vezes seguidas a loteria, Foi Deus que segurou o avião segundos antes dele bater no oceano… Quem não se encaixa nesse grupo acaba sendo bastante criativo (pra quem olha de fora) na hora de racionalizar eventos que acontecem nas suas vidas, abrindo mão de divindades, alinhamentos de estrelas, acaso, princípios da incerteza ou sei lá quais mecanismos. A autora chilena Isabel Allende, quando joga uma moeda pra decidir uma ação, diz no momento em que a moeda está lá no alto: Paula, decide por mim. (Paula é a filha dela já falecida.) Quando estavam gravando um depoimento do Paul McCartney pra um documentário sobre os Beatles, e ele estava falando justamente falando do John Lennon, surgiu de repente uma faixa de luz azul na sala, atrapalhando a entrevista. A resposta do Paul: Ei, é o John passando por aí! Não precisa cortar, pode deixar…

Digo tudo isso pra lembrar outra cena do romance, em que o narrador está sentado numa praça, cabisbaixo, enquanto umas crianças estão brincando. Uma delas se aproxima e pergunta por que ele está triste. O narrador diz que é por pensar na morte, em todos os mortos que ficaram pra trás. A criança olha, acena com a cabeça, e responde: Não dá pra viver se você não pensar na morte. E volta correndo pra brincar com os amiguinhos.

O que impacta o narrador é a conexão criada com uma criança desconhecida, de uns quatro anos, que diz algo que ela mesma bem provavelmente nem entende. Como se dá essa conexão? Segundo o narrador, é pela palavra, pela língua francesa, que atravessa a criança sem que ela perceba; pelas virtudes da língua, todos eles se entendem. Ou seja, o francês seria algo acima das pessoas que, de alguma forma difícil de expressar, os une.

Concluindo: quando uma mensagem de impacto chega a nós e não sabemos como isso se dá, e não queremos atribuir isso a Deus, podemos dizer que é o idioma que carrega essa mensagem. (Não digo que é a única explicação ou mesmo a melhor, mas é tão válida quanto as outras.)

*****

Num dos trechos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador-protagonista fala da morte, aos 19 anos, da Nhã-Loló, sobrinha do cunhado e candidata a noiva dele. O Brás Cubas conta como o Damasceno, pai da Nhã-Loló, contava com o apoio dos amigos na hora do enterro — ele tinha mandado oitenta convites, doze apareceram — e que esse “castigo dos homens” causado pelo abandono só tornava o “castigo de Deus” da perda da filha ainda pior. Ainda tentaram argumentar com ele que só foram os que de fato se importavam com a família, e os outros só iriam pra constar, e pra falar sobre política, negócios etc. E o Damasceno: Mas viessem!

Eu trago aqui esta interação não só pelo impacto emocional dela, mas também porque ela remete a meu modo de ver esse momento tão crítico nas relações humanas, que é o falecimento. Não sou imaginativo o suficiente pra dar valor a frases como Deixemos os mortos descansar em paz, ou Vamos honrar o legado do falecido, ou Acho que fulana gostaria que fizéssemos tal coisa (se ela estivesse aqui). Isso não me impede de tratar com delicadeza alguém que já morreu — mas por outros motivos. Não me parece gentil difamar um falecido, mas não porque “ele merece descansar em paz” ou por “honrar seu legado”; meu pensamento é que, qualquer coisa que o indivíduo tenha sido, ele também foi um pai, um filho, um marido, um irmão, um amigo… que podem estar vivos e podem ler/ver/ouvir o que se diz sobre ele. Mesma coisa quanto ir a um velório. Não se trata de estar junto ao homenageado, que nem vai saber que você está lá, mas (como o Machado de Assis captou tão bem) de estar do lado das pessoas, vivas, sofrendo pela partida.

E com isso volto à Arte Francesa da Guerra. Em certo ponto, o narrador fala do incômodo que ele sentiu assistindo a Falcão Negro em Perigo, filme americano de 2001. O filme, baseado em eventos reais, trata de forças especiais americanas que devem capturar certos indivíduos em Mogadíscio (Somália), do subsequente fracasso da operação, e do resgate dos soldados que ficaram pelo caminho. Um aspecto do filme especialmente assustador foi o final, em que um texto aparece na tela com o nome de cada um dos dezenove americanos mortos e o anúncio de que pelo menos mil somalianos morreram. Um número que, segundo o livro, não choca, porque a razão de mortos de lado a lado em guerras “anti-coloniais” é essa mesma, pelo menos dez pra um. E não choca porque, sendo curto e grosso, os mortos do lado de lá não contam. E claro, se os mortos do lado de lá são vistos assim, cada um é livre pra conjecturar como não são vistos os vivos — evidências não faltam.

Mas o narrador não encerra o assunto nessa nota pessimista. Ele abre espaço pra fazer uma homenagem ao Paul Teitgen, funcionário público que foi servir na Argélia dos anos 1950, então sob domínio do exército francês. Naquela época os militares franceses estavam bastante ativos na repressão à população árabe, na tentativa de extinguir o terrorismo que dominava a região; qualquer recurso era tolerado, fosse invasão de casa, prisão arbitrária, interrogatório, tortura, “desaparecimento”… O grande feito do Teitgen foi garantir que, a cada árabe apreendido por um francês, uma “alocação a residência” fosse assinada pelo francês (e pelo Teitgen também), indicando o destino do árabe: interrogatório, cadeia, fossa etc. Assim, o burocrata mantinha listas dos capturados, dos presos, dos soltos, comparava as diferenças, confrontava os oficiais — ah, estes aqui? pois é, desapareceram, foi isso. E, talvez o mais importante: ele contava o número de mortos, e sabia os nomes deles.

Alguém poderia dizer que isso não fez diferença no rumo da história da Argélia, ou daqueles mortos em particular. São só pedaços de papel, no final das contas. Mas, de novo, não é esse o ponto. O gesto do Teitgen não é só pros que se foram (se é que isso faz sentido), ou pros seus próprios compatriotas (ao mostrar que é possível preservar sua humanidade no meio de uma carnificina), mas pros que ficaram, e que têm que lidar com a dor da perda. Esses contam e têm nome, tanto quanto os que partiram.

O ser humano não presta

A ideia pro título deste texto eu peguei do programa de TV do Bill Maher. Num trecho em que ele mostra como a prática da escravidão está presente em diversos momentos na história da humanidade (exercida, inclusive, por negros contra negros e por brancos contra brancos), ele é forçado a constatar que, bem, nós não somos exatamente uma boa espécie.

Eu nem sempre concordo com o Maher, mas neste ponto em particular eu só posso acompanhar o pessimismo dele. Até porque o registro histórico pesa.

*****

O físico Stephen Hawking era daqueles que via, sim, vírus de computador como formas de vida, pelas suas propriedades de propagação, reprodução e tal. Mas ele não parava aí. O que era notável pro Hawking, por ser tão instrutivo sobre o que somos como espécie, é que, justamente quando nos coube criar uma forma de vida nova, a sua principal característica é a de destruir.

*****

Vários programadores relatam experiências semelhantes. Se você tiver alguma dificuldade quando estiver trabalhando num código, em vez de apenas colocar sua dúvida, digamos, num fórum de desenvolvedores — “não consigo programar esta função, alguém tem alguma ideia?” — o melhor a fazer é colocar a dúvida no mesmo fórum, fazer login com outra conta, e responder a sua própria dúvida com a solução errada. Virão tréplicas raivosas, ofensivas, possivelmente preconceituosas — mas a chance de a dúvida ser respondida é maior.

*****

O geógrafo Jared Diamond usa a população pré-industrial da Ilha de Páscoa como um alerta pra civilização humana como um todo. A sociedade que existia ilha estava bastante isolada de outras comunidades, e entrou em extinção simplesmente por abusar dos seus próprios recursos naturais — em outras palavras, não se aplicam desculpas de invasões externas, eventos climáticos, fugas etc. (pelo menos de acordo com as evidências ao nosso dispor).

A conclusão do Diamond: nós hoje, como eles na Ilha de Páscoa lá atrás, só podemos contar com nós mesmos — não temos outras sociedades em outros planetas com quem possamos fazer comércio, ou para onde possamos emigrar. Se aqueles escassos ilhéus, com as ferramentas rudimentares que tinham, conseguiram destruir o ambiente onde viviam, e por tabela se destruir, que esperança sobra pra nós, bem mais numerosos e com instrumentos muito mais sofisticados?

Alguns críticos questionaram a lógica do geógrafo, no sentido de que, se temos material humano em grande quantidade e tecnologia avançada pra aniquilação, não há motivo pra que ela não seja usada pro nosso bem. Aceito o argumento mas, pelo exposto até agora, também entendo quem prefira ficar com um pé atrás.

*****

Se discutiu bastante ao longo das décadas que a histórica frase do Neil Armstrong — um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade — contém um erro gramatical. Ao dizer “o homem” em vez de “um homem”, o astronauta usou uma expressão que muitas vezes se usa pra representar a raça humana como o todo — “o alvorecer do homem”, “os destinos do homem” etc. O que resultou numa contradição: como algo pode ser ao mesmo tempo um pequeno passo e um grande salto pra toda uma sociedade? (É óbvio que tudo isto é picuinha a ser discutida por puristas e desocupados, já que ninguém dá bola pros deslizes gramaticais do primeiro astronauta a pisar na Lua, e é assim que tem que ser mesmo.)

Lembrei desta discussão escrevendo este texto, e particularmente olhando pro título dele, porque, se existe alguma luz no fim deste túnel de pessimismo que eu apresentei até agora, é possível que ela esteja na distinção por trás do “homem” como indivíduo e “homem” como coletividade, na qual aquela tem que ser incentivada. Certamente não fui o primeiro a me atentar a essa distinção. O comediante George Carlin achava que, individualmente, pessoas podiam ser seres maravilhosos, com olhos que eram como janelas para o universo se você observasse com cuidado, mas que toda essa beleza se perdia no momento em que elas começavam a se juntar em grupos, não importa quão pequenos eles fossem. Um sentimento que ecoa o que o Goethe tinha constatado séculos antes sobre o povo alemão (respeitável como indivíduo, terrível como coletividade), que deve ter parecido bastante apropriada pro jornalista William Shirer como epígrafe da história que ele escreveu do Terceiro Reich.

Mas o que fazer com essa ideia? Confesso que não sei. E, na verdade, acho que nem preciso saber. Longe de mim me arriscar em análises literárias, mas me parece que o narrador do romance A Hora da Estrela, da Clarice Lispector, depois de relatar a trágica tentativa (fracassada) de uma moça simples do Nordeste de se integrar na sociedade carioca de classe média, nem quis se aventurar em explicações ou buscas de sentidos, preferindo um outro caminho. Tomo a mesma atitude, e faço minhas as palavras dele:

Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.

*****

Fontes: Aqui, o comentário do Bill Maher; aqui, a crítica ao Jared Diamond (o livro dele se chama Colapso); aqui, uma discussão sobre o erro do Neil Armstrong; aqui, a observação do George Carlin; e aqui, a citação do Goethe usada como epígrafe pelo William Shirer.

Trabalhando com poucas ferramentas — parte 2

(A parte 1 aqui.)

Me marcou a descrição que o psicólogo Steven Pinker fez do linguista Noam Chomsky: “Ele é um teórico daqueles de usar papel e caneta, e não sabe a diferença entre Jabba the Hutt e o Monstro dos Cookies da Vila Sésamo.” Achei impressionante que o oitavo autor mais citado de todos os tempos (segundo certas fontes) precisasse de tão poucas ferramentas, ainda mais trabalhando numa época com recursos tão mais avançados.

#####

Durante meu último ano de faculdade, estagiei numa firma de Tecnologia de Informação onde muitos de meus colegas tinham estudado Ciência da Computação, alguns deles em excelentes universidades, Federais e tudo. Na minha convivência com eles, descobri, espantado, que mais da metade dos que seguem essa carreira na faculdade não gostam de programar. Pensava eu (na verdade ainda penso): que tipo de trabalho esses cientistas da computação pensam em fazer com o diploma na mão?

#####

Também durante esse meu estágio, descobri que Engenharia de Software também tem muito pouco a ver — quase nada, na verdade — com programação. Pelo que me explicaram, um engenheiro de software digno do nome se dedica a desenhar bolinhas e flechinhas ligando essas bolinhas (as bolinhas são os módulos do sistema digital que se deseja implementar, e as flechinhas, as entradas e saídas de cada módulo). Daí cabe aos programadores implementar os módulos projetados pelo engenheiro.

Ah, quanto dessa engenharia era de fato praticada na firma onde eu estagiava é outro assunto.

#####

Como alguém já disse: com toda a sua formação, todo o seu talento, toda a sua personalidade, o regente de uma orquestra não toca uma única nota. Na verdade, como algumas espécimes dessa categoria demonstram, nem de instrumento (a batuta, no caso) precisa.

#####

Nesta conversa com o também músico Ben Harper, o Ringo Starr respondeu a queixas que surgem cada vez que ele monta uma banda para uma turnê mundial — “Mas você ainda está tocando?” O baterista responde que, enfim, tocar é simplesmente o que ele faz, e cita a lenda do blues B.B. King: “Enquanto eu conseguir ficar de pé, eu tenho um emprego!” O Ringo conclui: “Enquanto eu conseguir segurar dois pedaços de madeira, eu vou tocar.”

Arte recorrente

O John Mellencamp relembrou numa entrevista uma conversa dele com o Bob Dylan em que o Mellencamp perguntou pro Prêmio Nobel de Literatura de 2016 como ele fazia pra compor tantas grandes músicas. A resposta: “John, eu escrevi as mesmas quatro músicas um milhão de vezes.” A lembrança serviu pro Mellencamp dizer que ele mesmo estava o tempo todo escrevendo sempre a mesma música, só dando um ou outro toque diferente.

#####

Talvez em outro momento eu traga mais exemplos da música — artistas que eu adoro, como Ramones, Oasis, Led Zeppelin, fazem isso o tempo inteiro. Mas neste texto vou me concentrar em casos que acontecem na literatura.

Como o Philip Roth, um dos meus autores favoritos, que eu menciono com frequência neste espaço. Entre Minha Vida de Homem (1974), quando o Roth apresenta seu alter ego Nathan Zuckerman, até Fantasma Sai de Cena (2007), quando o Zuckerman, enfim, sai de cena, são uns 15 livros que contam com um personagem (o protagonista ou o narrador contando a história de outro) com mais ou menos as mesmas características, tirando uma ou outra coisa: nasceu em Newark em 1933 e foi criado no mesmo lugar, é judeu, tem um irmão, serviu no Exército, estudou literatura na faculdade, trabalha como professor e/ou romancista…

#####

Outro dos meus autores favoritos é o russo naturalizado norte-americano Vladimir Nabokov. Nos romances que ele escreveu em inglês (os que ele escreveu em russo eu conheço menos), dá pra perceber elementos que se repetem ao longo das obras: o protagonista professor (Pnin, Fogo Pálido, Bend Sinister, até o Humbert de Lolita dá aulas) e/ou autor (de novo Fogo Pálido, Sebastian Knight, de novo o Humbert de Lolita com seu livro-texto), o exilado (desses que eu citei, acho que a exceção é Bend Sinister). Mesmo temas sexuais incomuns não se limitam à pedofilia de Lolita: Look at the Harlequins! volta ao assunto, enquanto Ada trata de incesto, e Fogo Pálido aborda a homossexualidade, numa época em que a prática ainda era ilegal no Reino Unido, por exemplo.

#####

Este artigo resgata um texto do brasileiro Idelber Avelar, crítico e professor de literatura latino-americana nos EUA, em que ele mostra como o franco-argentino Julio Cortázar construía os contos dele sempre a partir de uma mesma fórmula: primeiro acontecia tal coisa, depois outro evento etc. O Idelber concluiu: “basta ler sete ou oito contos de Cortázar — falo dos textos posteriores a Bestiário — para que se adivinhe, sem muitos problemas, como terminarão os outros relatos. Leia Todos os Fogos o Fogo, e depois faça o exercício com As Armas Secretas. É muito mais fácil que adivinhar final de telenovela ou bang-bang.”

#####

Mais ou menos na época da publicação de um dos romances do Dan Brown, não sei se O Símbolo Perdido ou Inferno, saiu um perfil do autor no site de algum jornal inglês, acho que o Guardian. O autor da peça citava reclamações de alguns críticos, segundo os quais todos os livros do Brown (pelo menos desde O Código Da Vinci) eram essencialmente o mesmo romance, com apenas uma ou outra mudança cosmética. Mas o jornalista defendeu o autor: Se o sucesso extraordinário O Código Da Vinci causou o surgimento de incontáveis romances que imitavam descaradamente a fórmula daquele livro, por que cargas d’água o próprio responsável por esse fenômeno não podia se aproveitar dele?

Gentileza no discurso

Um amigo meu, quando estava escrevendo a dissertação de mestrado, incluiu um agradecimento ao orientador dele, “pelo espaço dado para eu desenvolver os meus talentos”, ou algo parecido. Eu estava por perto durante a escrita do trabalho, então eu sei que a nota foi uma forma educada que o meu amigo encontrou pra dizer que o professor não ajudou em nada durante o mestrado.

#####

Em uma cena do romance O Avesso da Vida, do Philip Roth, a viúva de um dentista (Henry) faz um discurso de homenagem pra ele no seu velório. Na trama, o Henry morreu durante uma cirurgia cardíaca eletiva: ele sofria de uma condição que estava controlada com remédios que tinham deixado ele impotente, e cada vez mais frustrado pelo fim de um caso com a assistente.

A viúva discursa pra tentar justificar essa operação desnecessária: segundo ela, o marido era um perfeccionista, que buscava a excelência em tudo o que fazia, no trabalho, com os filhos, e também na vida conjugal. Ou seja, viver com uma deficiência, que era perfeitamente tolerável pra esposa, era inadmissível para o dentista, e justificava o risco.

Eu gosto desse trecho do romance porque, do ponto de vista de quem não conhece todos os detalhes da vida do casal, pode parecer mesmo que o dentista era alguém sempre buscando o melhor em todos os aspectos da vida — e não (como fica claro pro leitor) alguém com angústias, dilemas, além de certos defeitos de conduta (a esposa estava sendo enganada, não?).

#####

No programa de TV Inside the Actors Studio, onde atores de renome falavam sobre toda a sua carreira, o entrevistador James Lipton usava uma forma muito gentil pra se referir a obras que não tinham tido muito sucesso: “vamos falar agora do filme X, que falhou em alcançar a sua plateia…”

#####

Em outra cena de O Avesso da Vida, o narrador da história (o famoso romancista Nathan) vai pra Israel visitar o irmão dele, o tal dentista Henry, que decidiu largar a família e se mudar pra lá — é uma versão alternativa da vida do homem, em que ele, em vez de morrer, vai morar num assentamento na Cisjordânia; enfim, o livro explica tudo. No assentamento, o Nathan encontra o Henry numa sala de aula onde jovens estão estudando hebraico; a professora, Ronit, pede pro autor falar um pouco de si pros alunos, no que é imediatamente atacado por um deles, Jerry: as acusações vão de “fanático” a “vexatório”, passando por “auto-iludido”, “ignorante” e “egoísta”, tudo porque o escritor esperou 20 anos pra voltar a viajar pra Palestina. 

Eu fiquei de pé, de costas para o Jerry e a turma. “Henry e eu vamos dar uma volta”, eu disse para Ronit. “Na verdade, eu vim para cá só para falar com ele.”

Os olhos dela permaneceram tão brilhantes quanto antes, cheios de uma curiosidade ardente. “Mas Jerry deu a opinião dele — você tem direito à sua.”…

“Eu abro mão dos meus direitos”, eu disse.

“Ele é jovem”, ela explicou.

“Pois é, mas eu não sou.”

#####

É lendária a história segundo a qual o Mick Jagger, bêbado, ligou pro quarto em que o Charlie Watts estava hospedado e mandou “o baterista dele” ir até onde o cantor estava — o Watts foi, e deu um soco na cara do Jagger. Me parece que, independente da hierarquia e da importância de cada membro da banda, o que pode ter irritado o Watts foi a verbalização de algo mais ou menos sabido por todos, mesmo que exagerado na forma. Tem coisas que é melhor que fiquem nas entrelinhas.

Trabalhando com poucas ferramentas

O produtor musical Rick Rubin foi entrevistado pelo jornalista americano Anderson Cooper pro programa de TV 60 Minutes.

— Você toca instrumentos musicais?

— Muito pouco.

— Você sabe operar uma mesa de som?

— Não. Eu não tenho nenhuma habilidade técnica, e não sei nada de música.

— Alguma coisa você deve saber!

— Bom, eu sei o que eu gosto e o que eu não gosto, e eu sou resoluto quanto ao que eu gosto e o que eu não gosto.

— Então o que é que eles buscam quando te contratam?

— A confiança que eu tenho no meu gosto, e a minha habilidade de expressar o que eu sinto, tem se demonstrado útil para os artistas.

#####

Como lembra o Nassim Taleb na Lógica do Cisne Negro: o megaempresário de origem grega Aristóteles Onassis não tinha um escritório — na verdade, nem de escrivaninha ele precisava. “Sua principal ferramenta de trabalho era um caderno, que continha toda a informação de que ele precisava… Em geral, ele acordava ao meio-dia. Se precisasse de aconselhamento jurídico, ele mandava trazer seus advogados para alguma casa noturna parisiense às duas da madrugada.”

#####

Outra história lembrada pelo Taleb, desta vez em Antifrágil. “O ensaísta e poeta francês Paul Valéry perguntou uma vez a Einstein se ele carregava consigo um caderno para anotar ideias. ‘Eu nunca tenho ideias’, foi a resposta (na verdade, ele só não tinha ideias de merda).”

#####

Já que falei do Einstein. A biografia escrita pelo Walter Isaacson conta que o físico ocasionalmente se hospedava na casa do empresário Leon Watters; numa dessas estadias, o Einstein “supreendeu Watters ao chegar sem robe de quarto nem pijamas. ‘Quando eu me recolho, eu durmo como a natureza me fez’, ele disse. Watters lembrou, no entanto, que ele pediu emprestado um lápis e um bloco de notas para deixar do lado da cama.”

#####

No programa de rádio do Howard Stern, o comediante Jerry Seinfeld falou que o tempo inteiro está procurando material pros seus shows de comédia — no restaurante, com a família, mesmo durante aquela entrevista com o Howard (“não, não tem nada que eu possa aproveitar aqui”). O radialista até perguntou se não dava trabalho ter que ficar lembrando de todas as ideias que certamente iam surgindo pra ele ao longo do dia; o Seinfeld: “Tem alguma outra coisa pra eu fazer? É só o que eu faço, dia após dia — você pergunta pro Tiger Woods como ele faz pra se lembrar dos tacos que precisa usar? Ele não tem outra coisa pra fazer da vida!”

Detalhismo

O Steve Jobs costumava contar uma lição aprendida com o pai Paul, um mecânico de classe média nada extraordinário. Estavam pai e filho instalando uma cerca em volta da casa da família, quando o mais velho disse:

Você tem que deixar a parte de trás da cerca, que ninguém vai ver, tão bonita quanto a parte da frente. Mesmo que ninguém veja, você vai saber, e isso vai mostrar que você se dedicou a fazer algo perfeito.

No comando da Apple, o Jobs filho levou essa lição adiante, e insistia na beleza de todos os componentes dos computadores fabricados pela empresa, inclusive das placas de circuito impresso; os engenheiros, ao terminarem de projetar seus computadores, podiam gravar seus nomes neles, já que “todo artista de verdade assina sua obra.”

#####

Perguntaram pro Denzel Washington, diretor e protagonista de Um Limite entre Nós (cujo título em inglês é, por coincidência, Fences, ou Cercas), por que o filme precisava de um diretor negro — um diretor branco não teria feito um trabalho igualmente bom?

Não é cor, é cultura. Steven Spielberg dirigiu A Lista de Schindler. Martin Scorsese dirigiu Os Bons Companheiros, certo? Steven Spielberg poderia ter dirigido Os Bons Companheiros. Martin Scorsese poderia ter feito um bom trabalho com A Lista de Schindler. Mas existem diferenças culturais. Eu sei, você sabe, todos nós sabemos, quando o pente quente encosta no cabelo no domingo de manhã, qual é o cheiro disso — isso é uma diferença de cultura, não só uma diferença de cor… Viu só, quando eu fiz o som de tsss [do pente quente no cabelo] e todo mundo riu? Não precisei dizer mais nada! É uma diferença cultural…

Nas entrelinhas da resposta do ator, eu detecto o seguinte: claro, ainda que um diretor italiano possa fazer um trabalho impecável lidando com temas judeus (e vice-versa), ainda vai faltar alguma coisinha que só um artista que conheça intimamente a cultura judia vai conseguir captar — e não basta transmitir pro suposto italiano todas as piadas, alusões, referências etc., como o Denzel fez com a história do pente quente, faz falta essa experiência de vida mesmo.

#####

Já que mencionei Os Bons Companheiros. Falando da produção do filme (baseado em fatos reais), o roteirista Nicholas Pileggi lembrou da preparação do Robert De Niro pra interpretar o seu personagem, o gângster Jimmy Burke. Pra uma cena em que os mafiosos vão tomar café da manhã, o De Niro se perguntou, “O Jimmy gostava de ketchup, né? Como ele se servia? Chacoalhava, batia no fundo, girava?” O Pileggi foi atrás das fontes dele (ele também escreveu o livro que serviu de inspiração pro filme) e descobriu que, de fato, o Jimmy fazia o pote girar pro ketchup cair no prato. E o roteirista teve que concordar que esse detalhezinho deu um toque importante de autenticidade na cena.

#####

A atriz Lauren Graham, protagonista da série de TV Gilmore Girls, foi confrontada numa entrevista por causa de uma polêmica surgida nas redes sociais: numa cena da série, a forma como ela estava tomando café indicava que o copo provavelmente estava vazio, e os fãs ficaram revoltados pelo descaso por parte da atriz e da produção do show. A Lauren respondeu que, se tem uma coisa com a qual ela é implicante sem qualquer culpa, é essa: “Em cena, um copo de café que eu estiver segurando vai sempre estar com café.” E ela até demonstrou que a forma de segurar o copo de café que se viu no tal episódio não era nada implausível, mesmo que um pouco atípica.

#####

Eu gosto de ouvir música me colocando no lugar de um dos músicos, me imaginando tocando o instrumento (não sei se consigo explicar o motivo, então nem vou tentar). E estava eu ouvindo “Stand“, do R.E.M. (uma grande música, de uma das minhas bandas preferidas), “sentado” no banco do baterista, quando percebi que a virada que o Bill Berry faz entre as duas estrofes que não são o refrão — ele faz logo depois que o vocalista canta “your head is there to move you around”, e em outros momentos — não era bem o que eu achava que era: o que pra mim parecia uma sequência de batidas “bumbo-caixa-bumbo-caixa”, na verdade incluía um toque simultâneo no chimbal numa das batidas no bumbo.

Meu ponto é: mesmo tendo ouvido “Stand” várias vezes, foi só quando “segurei as baquetas” do Bill Berry que me atentei pra detalhes que fugiam de mim quando meu papel como ouvinte/músico imaginário era o do guitarrista Peter Buck ou o do baixista Mike Mills — acho o Michael Stipe brilhante, mas vocalistas costumam me atrair menos. E aí está outra parte da graça de ser cuidadoso, detalhista, na arte e em outras empreitadas (além dos motivos apontados pelo pai do Steve Jobs): sempre existe a chance, a possibilidade, de alguém notar. O que, pra quem nota, pode ser uma delícia.

Consumindo a cultura local

Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõe, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou compreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimação penosa da cultura europeia, procuravam estilizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam – dos quais se formavam os nossos.

O que eu mais gosto neste convite à leitura de textos da literatura brasileira, feito pelo crítico Antonio Cândido e recuperado pelo Alex Castro, é a noção implícita de que, qualquer que fosse o mérito artístico deles, os autores nacionais eram os únicos em condições de observar, analisar e interpretar o que se passava aqui — os ingleses, franceses, alemães… eram melhores? Paciência: não moravam no Brasil, não sabiam nada de Brasil, então não tinham certo tipo de experiência que só uma classe bem restrita de escritores era capaz de transmitir (e que era nosso dever absorver).

De uns tempos pra cá, comecei a perceber que essa fórmula do crítico poderia se estender a outras manifestações culturais. Música e comédia, em particular. (Menciono essas duas porque são as que eu conheço melhor, mas não vejo por que não valeria pro cinema, pras artes plásticas etc.)

#####

Eu posso descobrir na Wikipédia que “Penny Lane” se refere a um bairro e a uma rua de Liverpool, assim como “Strawberry Fields Forever” se inspirou nos jardins de um orfanato do Exército da Salvação — o que, como fã de Beatles, é um deleite. E eu posso ouvir de um amigo belo-horizontino que o grande sucesso internacional do Skank deve o seu título a um tal Bar Nacional que existia na capital mineira, e que outro grande hit do grupo, “Tão Seu“, tem versos (“Ir ao cinema com você, um filme à toa no Pathé”) inspirados num antigo cinema daquela cidade. Ambos estabelecimentos, diga-se de passagem, que esse meu amigo costumava frequentar.

Mesmo que fosse, em vez dos Beatles, uma banda mais recente (Coldplay, digamos), e que as histórias da banda de Liverpool me tivessem sido contadas por um suposto amigo inglês, isso não se compararia, a meu ver, com a proximidade das experiências transmitidas pelo grupo mineiro, pelo simples fato de serem locais.

#####

Uma situação que se dá ocasionalmente comigo e que nunca deixa de me divertir é quando um conhecido (no trabalho, por exemplo) que gosta de rock descobre que eu morei por um tempo no ABC paulista. Daí vem a curiosidade, “Me responde uma coisa: afinal de contas, o que é esse tal de Aramaçan, hein?” Porque qualquer fã de rock na Grande São Paulo que se preze ouviu, viu ou leu, pelo menos uma vez na vida, o anúncio de uma banda que ia se apresentar no Aramaçan.

#####

Falando da comédia brasileira agora.

A minha relação com a comédia local é um pouco como aquela que eu tenho com os músicos brasileiros, comparados com os estrangeiros — eu discuti isso brevemente em outro texto meu. Pelo menos no caso dos artistas de stand-up, eu tenho a desculpa de que esse tipo de performance é um fenômeno relativamente recente por aqui. Mas, na linha do que eu venho escrevendo neste texto, tenho percebido que os comediantes brasileiros podem me oferecer algo que os de fora não fornecem, e que tem a ver com modos de falar em comum, gírias, gostos etc.

Um exemplo recente. O Instagram outro dia me sugeriu este vídeo da Bruna Louise, em que ela discute a retomada de contato dela com o pai, que abandonou a família faz muito tempo. As piadas são engraçadas e com um fundo tocante, bem de acordo com o tema abordado. Mas o que fazem delas especiais neste contexto são expressões como “status do Whatsapp”, “meia quatro queijos” (pra sabor de pizza) e “oi, sumido!”, que só poderiam ser usadas (e entendidas) por gente do Brasil.

#####

Pessoas que passam muito tempo rodeadas de obras de arte começam a apreciar cada vez mais os aspectos afetivos, históricos e culturais das peças que elas estão vendo, às vezes até mais do que seus aspectos puramente visuais. Como disse um profissional envolvido com as artes: “Obras de arte que me fazem reagir de forma pessoal… têm por trás de si um bocado de atividade conceitual, política e intelectual. As representações visuais não deixam de ser placas de sinalização para esse belo maquinário que foi construído, único na Terra, e que não é um simples rearranjo de elementos visuais, mas uma verdadeira máquina de pensamento que um artista, através de meios visuais e da combinação de seus olhos com suas percepções, criou.”

Eu aproveito este trecho do livro em que o psicólogo de origem croata Mihaly Csikszentmihalyi apresenta a noção de flow, ou fluxo, pra validar a ideia de consumir cultura local e, através desse consumo, nos aproximarmos mais da nossa própria identidade local — supondo que esse seja um objetivo desejado; talvez eu esteja falando de um ponto de vista bastante pessoal, reconheço. O que eu quero dizer é: se, como o psicólogo diz, a arte é, pra alguns, só uma forma de expressão que atende interesses além dos estéticos, por que não posso ouvir uma musica do Ira!, ou do Ultraje a Rigor, só pra me sentir mais conectado à minha cidade, ao meu país?

A originalidade das ideias

O Keith Olbermann, comentarista americano de política e esportes, falou uma vez numa entrevista a respeito da possibilidade de o futebol (ou soccer, como eles falam por lá) se tornar um esporte de fato popular, como o beisebol ou o futebol americano. A opinião dele: “Ouvi alguém dizer que o soccer é o esporte do futuro nos EUA, e sempre será. Eu concordo.”

Graças a algum mecanismo mental, juntei essa frase do Olbermann com aquele famoso slogan Brasil, o país do futuro — criado, curiosamente, por um europeu — e me saí com um diagnóstico sobre a nossa terra: O Brasil é o país do futuro, e sempre será. O que me pareceu uma sacada bastante original, até descobrir que o Millôr Fernandes se antecipou a mim, e de forma ainda mais concisa…

#####

Tem um amigo meu que também se dedica à escrita — ele, mais corajoso que eu, se aventura em romances — com quem eu gosto de conversar sobre literatura; justamente estávamos falando sobre nossos textos, sobre o quão originais conseguíamos ser, e falei algo do tipo, “Se for pra estender essa ideia de originalidade, bom, a gente não usa nenhuma palavra inventada, certo? Hahahaha…” Só um bom tempo depois fui me dar conta que o que tinha me parecido uma tirada bem inovadora era essencialmente o trecho de uma música de uma banda da qual eu nem sou tão fã assim…

#####

Criei uma métrica pra estabelecer a importância relativa dos integrantes dos Beatles: o impacto no destino da banda quando cada um deles decidiu ir embora.

Quando o John anunciou pros outros três a saída dele, se fez uma pressão pra que ele ficasse quieto, e assim não atrapalhar renegociações de contrato que estavam em curso (por trás dessa pressão estava a certeza de que, se ele abrisse a boca, ficaria claro pro resto do mundo que os Beatles tinham acabado). Alguns meses depois, o Paul teve a mesma ideia e não ficou quieto, e aconteceu exatamente o que achavam que fosse acontecer se o John tivesse aberto a boca. Agora, quando o Ringo largou o grupo durante a gravação do Álbum Branco, suplicaram pela volta dele, mas os trabalhos prosseguiram; quando o George decidiu sair um tempo depois, o John nem demonstrou muita preocupação: “A gente traz o Eric Clapton, ele é tão bom quanto.”

Daí, procurando material no blog do Rafael Galvão pra outro texto que eu estava escrevendo, achei um artigo dele que propunha mais ou menos o que eu acabei de expor — ele só não discutiu o Ringo. Então pensei: será que o Rafael inspirou a minha regra, ainda que inconscientemente? A verdade é que, embora eu goste de muita coisa que ele tenha escrito, inclusive sobre os Beatles, não me lembro de ter lido esse artigo em particular. Enfim, se existiu inspiração de fato, não é algo que me incomode; de novo, o material do Rafael é muito bom.

#####

Visitando o blog do Rafael, percebi outra coisa: visualmente, o site dele e o do meu também são bastante parecidos. Mais uma vez, não vejo inspiração deliberada — nem o fim do mundo se fosse o caso.

#####

Tá, sexo é bom e tal, mas já aconteceu de você fazer uma observação durante um jogo e o comentarista dizer a mesma coisa logo depois?

Embora não de forma tão exagerada, eu me identifico com o que esse indivíduo disse no Twitter. E algo assim deve ter acontecido comigo, embora não me venha à memória nenhuma situação específica. Eu me lembro, sim, é de ver no YouTube os melhores momentos da final da Copa de 1990 entre as seleções da Alemanha e da Argentina — um jogo decidido num pênalti contestado até hoje pelos sul-americanos.

Enfim, assistindo ao vídeo, formei a opinião de que a marcação do pênalti pode ter tido outra motivação além de má-fé: um pouco antes daquele lance, houve uma falta dentro da grande área argentina que o juiz não deu, e este talvez quisesse compensar a decisão errada.

Pois qual não foi minha surpresa, e minha satisfação, ao rever os lances daquela final na transmissão da TV Globo, que o comentarista brasileiro — ninguém menos que o Rei Pelé! — disse exatamente o que eu pensei ao ver o suposto pênalti? Esse foi um momento em que saber que minha ideia não era original não me incomodou nem um pouco. Pelo contrário.

  

Cobrança

O Muricy Ramalho, então coordenador do São Paulo, contestou, numa visita a um podcast, a noção de “pressão” ou de “cobrança” de que jogadores de futebol de grandes equipes sofreriam constantemente. Segundo o Muricy, isso é uma “mentira”, uma “muleta”: um jogador que assina um contrato milionário, com um clube de milhões de fanáticos torcendo por ele, e que tem a seu dispor uma estrutura de trabalho de primeira linha (refeitório, pedicure, massagistas, academia, campo de treinamento…), tem que ser cobrado mesmo, não pode reclamar de nada.

Outra noção que é uma “mentira” pro Muricy é essa noção de “motivacional” — ele se refere a certos vídeos motivacionais que treinadores às vezes preparam a seus jogadores antes de partidas importantes, com depoimentos de familiares ou outras imagens pra gerar emoção. Porque, de novo, o jogador tem que ser cobrado por aquilo que ele tem que fazer.

E o são-paulino conclui com uma observação: o jogador bom, o craque, até gosta de ser cobrado; o jogador mais-ou-menos é o que mais reclama, diz que a carne do refeitório está ruim ou algo do estilo.

#####

Esta deliciosa lembrança trazida pelo Vampeta, jogador que compunha o elenco ganhador da Copa do Mundo em 2002, justamente sobre o vídeo apresentado pela comissão técnica da Seleção à equipe antes do jogo final contra a Alemanha, e a reação do seu colega de time Rivaldo a ele, meio que confirma o que o Muricy diz sobre essa “mentira” de “motivacional”, e de que craque — algo que o Rivaldo certamente era — não precisa de “muletas” assim.

#####

Isso que o Muricy percebeu convivendo com jogadores de futebol eu constatei na minha experiência dando aulas: quem dá problema é aluno ruim (com exceções, claro). Aluno bom não reclama do horário das aulas, da matéria das provas, da demora na divulgação das notas…

#####

Eu li em algum lugar o Kobe Bryant, um dos maiores jogadores de basquete da história, explicando quando ele se deu conta de que ele podia de fato dominar o esporte. Logo que ele se profissionalizou, ele viu que a maioria dos seus colegas não era lá muito esforçada nos treinos ou competitiva nos jogos — afinal de contas, com os belos salários que os jogadores ganhavam, as principais preocupações de vida deles já tinham sido resolvidas. O Bryant, com ambições que iam além das financeiras, pensou, “O quê? Esse povo acomodado aí é a minha concorrência? Nossa, vou dar um banho!” E de fato, foi o que aconteceu por muitos anos.

#####

Como mostra o Ryan Holiday no blog dele, o Kobe Bryant não é, nem de longe, o único profissional altamente bem-sucedido a ter esse olhar além de considerações, digamos, mundanas. O Holiday usa como exemplos o Nick Saban, técnico de futebol americano ganhador de diversos títulos no campeonato universitário, e o investidor multibilionário Warren Buffett. O curioso é que tanto o Saban quanto o Buffett não usam vitórias ou dinheiro como métricas pra definir seus sucessos. Como diz o treinador:

Todo mundo diz, “Ele acabou de ganhar uma partida de 31 a 3. Está reclamando de quê?” Mas isso volta para a noção do placar interno versus o placar externo. Qual é mais importante? Se você vai atingir seus objetivos, sempre tem de ser o placar interno.

(Coincidência ou não, o investidor também aplica essa ideia de “placar interno”.)