O Steve Jobs costumava contar uma lição aprendida com o pai Paul, um mecânico de classe média nada extraordinário. Estavam pai e filho instalando uma cerca em volta da casa da família, quando o mais velho disse:

Você tem que deixar a parte de trás da cerca, que ninguém vai ver, tão bonita quanto a parte da frente. Mesmo que ninguém veja, você vai saber, e isso vai mostrar que você se dedicou a fazer algo perfeito.

No comando da Apple, o Jobs filho levou essa lição adiante, e insistia na beleza de todos os componentes dos computadores fabricados pela empresa, inclusive das placas de circuito impresso; os engenheiros, ao terminarem de projetar seus computadores, podiam gravar seus nomes neles, já que “todo artista de verdade assina sua obra.”

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Perguntaram pro Denzel Washington, diretor e protagonista de Um Limite entre Nós (cujo título em inglês é, por coincidência, Fences, ou Cercas), por que o filme precisava de um diretor negro — um diretor branco não teria feito um trabalho igualmente bom?

Não é cor, é cultura. Steven Spielberg dirigiu A Lista de Schindler. Martin Scorsese dirigiu Os Bons Companheiros, certo? Steven Spielberg poderia ter dirigido Os Bons Companheiros. Martin Scorsese poderia ter feito um bom trabalho com A Lista de Schindler. Mas existem diferenças culturais. Eu sei, você sabe, todos nós sabemos, quando o pente quente encosta no cabelo no domingo de manhã, qual é o cheiro disso — isso é uma diferença de cultura, não só uma diferença de cor… Viu só, quando eu fiz o som de tsss [do pente quente no cabelo] e todo mundo riu? Não precisei dizer mais nada! É uma diferença cultural…

Nas entrelinhas da resposta do ator, eu detecto o seguinte: claro, ainda que um diretor italiano possa fazer um trabalho impecável lidando com temas judeus (e vice-versa), ainda vai faltar alguma coisinha que só um artista que conheça intimamente a cultura judia vai conseguir captar — e não basta transmitir pro suposto italiano todas as piadas, alusões, referências etc., como o Denzel fez com a história do pente quente, faz falta essa experiência de vida mesmo.

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Já que mencionei Os Bons Companheiros. Falando da produção do filme (baseado em fatos reais), o roteirista Nicholas Pileggi lembrou da preparação do Robert De Niro pra interpretar o seu personagem, o gângster Jimmy Burke. Pra uma cena em que os mafiosos vão tomar café da manhã, o De Niro se perguntou, “O Jimmy gostava de ketchup, né? Como ele se servia? Chacoalhava, batia no fundo, girava?” O Pileggi foi atrás das fontes dele (ele também escreveu o livro que serviu de inspiração pro filme) e descobriu que, de fato, o Jimmy fazia o pote girar pro ketchup cair no prato. E o roteirista teve que concordar que esse detalhezinho deu um toque importante de autenticidade na cena.

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A atriz Lauren Graham, protagonista da série de TV Gilmore Girls, foi confrontada numa entrevista por causa de uma polêmica surgida nas redes sociais: numa cena da série, a forma como ela estava tomando café indicava que o copo provavelmente estava vazio, e os fãs ficaram revoltados pelo descaso por parte da atriz e da produção do show. A Lauren respondeu que, se tem uma coisa com a qual ela é implicante sem qualquer culpa, é essa: “Em cena, um copo de café que eu estiver segurando vai sempre estar com café.” E ela até demonstrou que a forma de segurar o copo de café que se viu no tal episódio não era nada implausível, mesmo que um pouco atípica.

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Eu gosto de ouvir música me colocando no lugar de um dos músicos, me imaginando tocando o instrumento (não sei se consigo explicar o motivo, então nem vou tentar). E estava eu ouvindo “Stand“, do R.E.M. (uma grande música, de uma das minhas bandas preferidas), “sentado” no banco do baterista, quando percebi que a virada que o Bill Berry faz entre as duas estrofes que não são o refrão — ele faz logo depois que o vocalista canta “your head is there to move you around”, e em outros momentos — não era bem o que eu achava que era: o que pra mim parecia uma sequência de batidas “bumbo-caixa-bumbo-caixa”, na verdade incluía um toque simultâneo no chimbal numa das batidas no bumbo.

Meu ponto é: mesmo tendo ouvido “Stand” várias vezes, foi só quando “segurei as baquetas” do Bill Berry que me atentei pra detalhes que fugiam de mim quando meu papel como ouvinte/músico imaginário era o do guitarrista Peter Buck ou o do baixista Mike Mills — acho o Michael Stipe brilhante, mas vocalistas costumam me atrair menos. E aí está outra parte da graça de ser cuidadoso, detalhista, na arte e em outras empreitadas (além dos motivos apontados pelo pai do Steve Jobs): sempre existe a chance, a possibilidade, de alguém notar. O que, pra quem nota, pode ser uma delícia.

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