Tô de saco cheio de gente que . Eles acham que são melhores que todo mundo! Qualquer coisa que você for ler está em algum lugar na TV. Você já foi ver um filme e você gostou do filme porque é — um filme? E sempre tem alguém que estraga: “Ah, o livro é bem melhor que o filme…” — Cala a boca, nerd!

Não é melhor, nunca é melhor, não foi por nada que inventaram filmes — livros são uma merda! Não estamos em 1852, ou na escola, não preciso mais ler. Resolvo em duas horas e acabou, é melhor. “Mas tem muito mais do que a história no livro” — Eu confio no Tom Hanks pra me contar o que eu preciso saber, OK?

Eu li um livro que tinham filmado, porque era pra escola, Tubarão. Minha professora disse, “Você vai adorar, o livro é bem melhor que o filme”, eu pensei, Ótimo, porque o filme era horrível, né? Um tubarão mecânico de 8 metros, explosões, mas olha só!, o livro tem — páginas! Bem melhor! Uau, me perdi num mundo de faz-de-conta, professora, e agora sou gay!

Eu entendo e acho o máximo a observação que este comediante fez sobre o pedantismo de certos consumidores de cultura que não admitem que um filme possa ser melhor que o livro no qual ele se baseou, ou pelo menos que aquele possa existir independente deste (admito que eu talvez tenha feito parte desse grupo em algum momento). Mas eu acho que dá pra ter uma visão alternativa com relação a filmes e livros: eles podem, em vez de ser antagonistas, parceiros. E essa é uma percepção que eu tive graças a uma leitura recente, de um livro que inspirou um filme de que eu sempre gostei bastante.

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Pra mim é um pouco como aqueles programas que costumam passar à tarde na TV aberta sobre fofocas, reality shows etc.; ou revistas como a Contigo!, que divulgavam com antecedência o que ia se passar nos capítulos das novelas daquela semana, sem qualquer impacto na audiência (hoje o papel dessas revistas é feito pela internet); ou fóruns online onde os fãs discutem, por exemplo, os mais diversos assuntos relativos a Guerra nas Estrelas (a busca no Google me deu isto). Meu ponto é: quem é fã de alguma coisa, muitas vezes vai atrás de tudo o que tem a ver com essa coisa, o que pode incluir a literatura que a originou — não à toa, às vezes acontece de, logo depois da estreia de um filme ou série de TV de sucesso, o romance que o inspirou acaba sendo levado à lista de best-sellers (este e este são alguns exemplos).

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Estava eu no carro com um amigo discutindo cenas do filme Alta Fidelidade, do qual nós dois somos fãs. Daí ele soltou, “Ué, você não leu o livro? Eu podia jurar que você tinha lido o livro…” Foi quando eu me senti na obrigação moral de, finalmente, ler a obra do Nick Hornby.

E o livro é bom! Se é “melhor que o filme”, não consigo dizer, faz uns 20 anos que assisti — e, honestamente, não é uma questão que me interesse. O que importa pra mim é que a leitura do romance, além do prazer da experiência em si, permite um outro olhar pro próprio filme. Um exemplo: o protagonista da história, Rob, é o dono de uma loja de discos que adora fazer listas de tudo quanto é aspecto da vida dele: 5 piores fins de relacionamento, 5 melhores músicas de abertura de um disco… No romance, se descobre que é um dos funcionários da loja, Barry, que dá a ideia pro Rob de criar essas listas — porque o Barry é incapaz de expressar qualquer coisa que se passe na vida dele (um filme assistido, uma pessoa que ele viu na rua) de forma articulada e com um mínimo de nuance; tudo tem que ser filtrado por uma lista. Outro exemplo: num dado momento da trama, o Rob vai passar a noite com a cantora americana Marie, uma personagem recorrente. No filme, essa decisão é essencialmente anunciada de supetão: “hoje à noite eu vou dormir com a Marie”; no livro, ele fala mais ou menos do mesmo jeito mas, por causa de informação adicional, não parece tão inesperado.

Não estou dizendo que ler o livro é indispensável — a experiência do longa-metragem pode ser perfeitamente satisfatória (era isso mesmo o que eu achava no caso de Alta Fidelidade, até duas semanas atrás). O que eu estou dizendo é que, pra quem tem disposição (é um passatempo custoso no que se refere a tempo, afinal de contas), o resultado pode ser recompensador.

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Não acho que seja frequente, mas aconteceu uma situação, lendo Alta Fidelidade, em que ter visto o filme antes me ajudou. Esta cena, em que o Ian, o atual namorado da ex do Rob, vai visitá-lo na loja de discos, está no livro, com algumas diferenças (o diálogo originalmente é por telefone). E o Rob do livro também imagina universos paralelos em que ele se sai melhor da conversa com o Ian; tendo visto o filme antes, esses diálogos nos universos paralelos não parecem tão estranhos, e são identificados rapidamente.

Ah, sim: pra mim, neste caso do trecho da briga, o filme é melhor que o livro. Tem outros trechos pros quais o livro é melhor; um em particular aparece bem no final da história, e como talvez seja spoiler, não vou indicar aqui (pra quem conhece a história, é quando o Rob é entrevistado pela jornalista).

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Talvez seja possível defender que a literatura é inerentemente mais rica do que o cinema (este blog faz uma breve menção a esse fato). E mesmo uma comparação das versões impressa e cinematográfica de uma dada obra traria evidências da maior quantidade de recursos disponíveis na primeira forma de expressão, como tão bem percebeu o comediante que eu citei no começo deste texto. Mas às vezes acontece o contrário, e o cinema permite que um artista se expresse de maneiras inacessíveis a um escritor. Exemplo: na cena do velório do pai da ex do Rob, em Alta Fidelidade, bastam pouquíssimos segundos para o diretor demonstrar, sem diálogos, a aversão que a irmã da ex sente pelo protagonista. Como seria recriar esse belo trecho — que não está no livro, os dois personagens originalmente até se dão bem — em palavras?

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