Filme vs. livro: o duelo

Tô de saco cheio de gente que . Eles acham que são melhores que todo mundo! Qualquer coisa que você for ler está em algum lugar na TV. Você já foi ver um filme e você gostou do filme porque é — um filme? E sempre tem alguém que estraga: “Ah, o livro é bem melhor que o filme…” — Cala a boca, nerd!

Não é melhor, nunca é melhor, não foi por nada que inventaram filmes — livros são uma merda! Não estamos em 1852, ou na escola, não preciso mais ler. Resolvo em duas horas e acabou, é melhor. “Mas tem muito mais do que a história no livro” — Eu confio no Tom Hanks pra me contar o que eu preciso saber, OK?

Eu li um livro que tinham filmado, porque era pra escola, Tubarão. Minha professora disse, “Você vai adorar, o livro é bem melhor que o filme”, eu pensei, Ótimo, porque o filme era horrível, né? Um tubarão mecânico de 8 metros, explosões, mas olha só!, o livro tem — páginas! Bem melhor! Uau, me perdi num mundo de faz-de-conta, professora, e agora sou gay!

Eu entendo e acho o máximo a observação que este comediante fez sobre o pedantismo de certos consumidores de cultura que não admitem que um filme possa ser melhor que o livro no qual ele se baseou, ou pelo menos que aquele possa existir independente deste (admito que eu talvez tenha feito parte desse grupo em algum momento). Mas eu acho que dá pra ter uma visão alternativa com relação a filmes e livros: eles podem, em vez de ser antagonistas, parceiros. E essa é uma percepção que eu tive graças a uma leitura recente, de um livro que inspirou um filme de que eu sempre gostei bastante.

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Pra mim é um pouco como aqueles programas que costumam passar à tarde na TV aberta sobre fofocas, reality shows etc.; ou revistas como a Contigo!, que divulgavam com antecedência o que ia se passar nos capítulos das novelas daquela semana, sem qualquer impacto na audiência (hoje o papel dessas revistas é feito pela internet); ou fóruns online onde os fãs discutem, por exemplo, os mais diversos assuntos relativos a Guerra nas Estrelas (a busca no Google me deu isto). Meu ponto é: quem é fã de alguma coisa, muitas vezes vai atrás de tudo o que tem a ver com essa coisa, o que pode incluir a literatura que a originou — não à toa, às vezes acontece de, logo depois da estreia de um filme ou série de TV de sucesso, o romance que o inspirou acaba sendo levado à lista de best-sellers (este e este são alguns exemplos).

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Estava eu no carro com um amigo discutindo cenas do filme Alta Fidelidade, do qual nós dois somos fãs. Daí ele soltou, “Ué, você não leu o livro? Eu podia jurar que você tinha lido o livro…” Foi quando eu me senti na obrigação moral de, finalmente, ler a obra do Nick Hornby.

E o livro é bom! Se é “melhor que o filme”, não consigo dizer, faz uns 20 anos que assisti — e, honestamente, não é uma questão que me interesse. O que importa pra mim é que a leitura do romance, além do prazer da experiência em si, permite um outro olhar pro próprio filme. Um exemplo: o protagonista da história, Rob, é o dono de uma loja de discos que adora fazer listas de tudo quanto é aspecto da vida dele: 5 piores fins de relacionamento, 5 melhores músicas de abertura de um disco… No romance, se descobre que é um dos funcionários da loja, Barry, que dá a ideia pro Rob de criar essas listas — porque o Barry é incapaz de expressar qualquer coisa que se passe na vida dele (um filme assistido, uma pessoa que ele viu na rua) de forma articulada e com um mínimo de nuance; tudo tem que ser filtrado por uma lista. Outro exemplo: num dado momento da trama, o Rob vai passar a noite com a cantora americana Marie, uma personagem recorrente. No filme, essa decisão é essencialmente anunciada de supetão: “hoje à noite eu vou dormir com a Marie”; no livro, ele fala mais ou menos do mesmo jeito mas, por causa de informação adicional, não parece tão inesperado.

Não estou dizendo que ler o livro é indispensável — a experiência do longa-metragem pode ser perfeitamente satisfatória (era isso mesmo o que eu achava no caso de Alta Fidelidade, até duas semanas atrás). O que eu estou dizendo é que, pra quem tem disposição (é um passatempo custoso no que se refere a tempo, afinal de contas), o resultado pode ser recompensador.

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Não acho que seja frequente, mas aconteceu uma situação, lendo Alta Fidelidade, em que ter visto o filme antes me ajudou. Esta cena, em que o Ian, o atual namorado da ex do Rob, vai visitá-lo na loja de discos, está no livro, com algumas diferenças (o diálogo originalmente é por telefone). E o Rob do livro também imagina universos paralelos em que ele se sai melhor da conversa com o Ian; tendo visto o filme antes, esses diálogos nos universos paralelos não parecem tão estranhos, e são identificados rapidamente.

Ah, sim: pra mim, neste caso do trecho da briga, o filme é melhor que o livro. Tem outros trechos pros quais o livro é melhor; um em particular aparece bem no final da história, e como talvez seja spoiler, não vou indicar aqui (pra quem conhece a história, é quando o Rob é entrevistado pela jornalista).

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Talvez seja possível defender que a literatura é inerentemente mais rica do que o cinema (este blog faz uma breve menção a esse fato). E mesmo uma comparação das versões impressa e cinematográfica de uma dada obra traria evidências da maior quantidade de recursos disponíveis na primeira forma de expressão, como tão bem percebeu o comediante que eu citei no começo deste texto. Mas às vezes acontece o contrário, e o cinema permite que um artista se expresse de maneiras inacessíveis a um escritor. Exemplo: na cena do velório do pai da ex do Rob, em Alta Fidelidade, bastam pouquíssimos segundos para o diretor demonstrar, sem diálogos, a aversão que a irmã da ex sente pelo protagonista. Como seria recriar esse belo trecho — que não está no livro, os dois personagens originalmente até se dão bem — em palavras?

Faróis

O historiador Tony Judt usou o artigo “Falando de Israel, sem os Clichês” (publicado nesta coleção) pra responder, pelo menos em parte, às críticas que alguns fazem à influência do lobby de Israel na política dos EUA. Segundo o Judt, que o lobby israelense exista e seja bem-sucedido não deveria ser surpresa, já que a função dos lobbies é essa mesma. Sem contar que existem lobbies muito mais nocivos pro país e que não causam tanta polêmica, como o das petrolíferas, o dos fabricantes de armas, o dos bancos etc. Por outro lado, o historiador concorda que, dadas as posições pró-Israel adotadas por políticos americanos ao longo de décadas, a influência israelense é, sim, desproporcional. (O que não valida, é claro, acusações de que “os judeus mandam no país”, ou algo parecido.)

Nessa linha do Judt, eu gostaria de falar de um tipo de edificação que, longe de ser desimportante, me parece estar representada de maneira desproporcional em todo tipo de manifestação cultural: o farol.

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Vamos às evidências, e sem ir além de obras com as quais eu tive contato. Uma das principais autoras do século XX, a inglesa Virginia Woolf, tem um romance chamado justamente Ao Farol; confesso que tentei encarar esse livro e desisti logo nas primeiras páginas mas, depois de ler a sinopse na Wikipédia, acho que vale a pena um novo esforço. Tem também o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, que disse, “Não conheço nenhum outro edifício construído pelo homem tão altruísta quanto um farol. Eles foram feitos apenas para servir.” Ainda nas artes narrativas, eu gosto da cena final do filme Olhos de Serpente, de 1998, em que o personagem do Nicolas Cage compara os cassinos de Atlantic City com os faróis falsos que, séculos antes, piratas instalavam ali perto, na costa de Nova Jersey, de modo a roubar os barcos perdidos que se chocavam nas rochas. (“O único que mudou desde então foi a intensidade das luzes”, diz o personagem.) Finalmente, temos aquele sucesso dos Paralamas que, de acordo com o vocalista e letrista do grupo, fala “do cuidado que as mulheres têm com seus maridos, pescadores, guiando-os com a luz da lanterna na praia para saber o caminho de volta do mar, a assim não ficassem desorientados, como se fossem faróis.” (O curioso aqui é que o termo “lanterna dos afogados” vem de um romance do Jorge Amado que não faz qualquer associação da expressão a um farol.)

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Indo das Humanidades pras Ciências, esta história do desenvolvimento da teoria eletromagnética menciona o inglês Michael Faraday, um dos maiores físicos do século XIX, que não gostava de se dedicar a atividades que o distraíssem dos seus interesses científicos (fazer pareceres pra indústria, por exemplo), mas que fez questão de se empenhar na melhoria dos faróis do seu país (tarefa que ele via como um dever patriótico). Disse o Faraday: “Não existe dispositivo humano que exija maior regularidade e precisão de operação que um farol. Recebe a confiança do marinheiro como se fosse uma lei natural e, assim que o sol se põe, ele espera que, com essa mesma certeza, suas luzes apareçam.” Esse mesmo livro que eu citei traz outro fato notável: ainda no século XX, os faróis eram considerados importantes o bastante pra que invenções associadas a eles merecessem o Nobel de Física (isso aconteceu especificamente em 1912; alguns dos “perdedores” naquela ocasião foram Albert Einstein e Max Planck).

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Certamente tem bem mais exemplos por aí; eu só trouxe aqueles com os quais eu tenho alguma familiaridade. E de novo, eu não acho que os faróis sejam os tipos de construções que mais inspirem artistas por aí — meu palpite é que catedrais e bibliotecas (Borges que o diga), só pra ficar em duas categorias, tenham representação muito maior. Meu ponto, parecido com o que o Tony Judt traz ao falar do lobby israelense, é que, pra presença que os faróis têm no dia-a-dia das pessoas (quantas vezes qualquer um de nós viu uma construção dessas?), as aparições deles, por exemplo, na literatura, talvez seja exagerada. Não que haja algum problema nisso, claro. Mas é notável.

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Encerro com duas observações. A primeira: à medida que eu escrevia estas linhas, percebi que estava fazendo algo não muito distante do que o Tony Judt tinha feito dois outros ensaios — “A Glória dos Trilhos” e “Tragam de Volta os Trilhos!” que também aparecem naquela coleção que eu mencionei lá em cima —, uma espécie de defesa e exaltação das estradas de ferro. Mas a semelhança é superficial; primeiro, porque eu não sou o Tony Judt; segundo, porque, ao contrário dele (aparentemente, um fanático dos trens), não tenho nenhum apego particular pelo tema do meu texto. E a segunda observação: outra produção que, ainda que de forma inconsciente, pode ter servido de inspiração pra este texto é aquela bela crônica do Luis Fernando Verissimo sobre o verbo “defenestrar” — por que existe um verbo pro ato de atirar algo ou alguém pela janela e não, digamos, pela porta?, pergunta ele. Claro, a crônica do gaúcho tem um humor que eu nem me atrevo a imitar; de novo, eu não sou o Verissimo.

Autores do olho, autores do ouvido

Em outro texto, eu falei da diferença entre músicos do olho e músicos do ouvido — em resumo, os primeiros, mais frequentes na música clássica, dependem muito da partitura e das orientações de um maestro, enquanto que os últimos, mais comuns na música popular, muitas vezes nem sabem ler partituras, e precisam prestar muita atenção ao que os outros músicos do grupo estão tocando.

Recentemente eu percebi que essa distinção “olho vs. ouvido” também se aplica a escritores. A jornalista Claudia Roth Pierpont escreveu uma espécie de ensaio biográfico sobre o autor Philip Roth (sem parentesco), em que ela compara ele com outro romancista americano de renome, John Updike.

Como escritores, as suas grandes virtudes parecem surgir de diferentes órgãos fundamentais de percepção, que poderiam ser toscamente caracterizados como o olho e o ouvido. Updike era um pintor com palavras — ele estudou Artes por um ano em Oxford… Roth [era] o mestre das vozes: as discussões, as piadas, as trocas histéricas, as disputas internas mesmo quando um personagem está sozinho, o som de uma mente trabalhando. Não existe uma única página escrita por um que pudesse ser confundida com uma escrita pelo outro.

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Eu sou fã do Roth; já o Updike, parece que não é pra mim (só tentei Rabbit, run, qualquer dia eu encaro outro texto dele). Com o Nabokov, de quem eu também sou fã, parece que se dava o contrário: ele admirava o Updike (“um dos melhores artistas desta época, difícil dizer qual dos seus contos é meu favorito”), mas desprezava o Roth (“farsesco”).

Um palpite meu: o gosto do autor de Lolita era mesmo pra autores do olho; pra autores do ouvido ele não tinha lá muita paciência.

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Pra fundamentar a minha hipótese, eu lembro que: (1) como eu digo aqui, o Nabokov reconhecia não ter o melhor dos talentos pra escrever diálogos que soassem autênticos, que dependeriam de um ouvido bem apurado; e (2) o tipo de informação que ele, como professor de literatura russa, tentava transmitir a seus alunos:

Qualquer asno consegue assimilar os pontos fundamentais da atitude de Tolstoy com relação ao adultério, mas para aproveitar a arte de Tolstoy, o bom leitor deve desejar visualizar, por exemplo, a disposição de um vagão de trem noturno que fazia o trajeto Moscou-São Petersburgo cem anos atrás.

Ou seja, informação visual.

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O que eu acho que explica essa apreciação literária mais visual do Nabokov é a sinestesia grafema-cor dele — uma condição que fazia com que ele associasse letras a cores. A página de um livro, pra ele, tinha literalmente outro tom do que pra qualquer um de nós.

E quanto a essa má vontade com literatura mais, por assim dizer, “sonora”: eu diria que a falta de gosto dele pra música não ajudava muito.

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Encerro com outro trecho do livro da Pierpont.

Roth tinha lido O Apanhador no Campo de Centeio [do JD Salinger] logo quando tinha saído [em 1951]. No entanto, já como escritor, ele começou a ir atrás de qualquer coisa de Salinger que ele conseguisse achar, incluindo contos publicados durante os anos 1940 na Collier’s e no Saturday Evening Post. “Era a voz, o intimismo”, ele explica, o que tinha causado impacto nele. “Isso não é o que você aprende quando estuda literatura. Existe esse senso de conversa, de confissão. Era indecente. Como é que eu ia conhecer isso lendo Thomas Hardy?”

Num dos links que eu coloquei aqui, o autor de Lolita é também bastante elogioso ao Salinger, embora não conste nenhum comentário dele sobre o grande romance do americano. Eu digo isso porque esse trecho que eu acabei de destacar, além de indicar uma das influências no estilo do Roth, também ajuda a entender que justamente esse gosto pelo coloquialismo, pela palavra falada, era o que caía mal pro aristocrático Nabokov — não custa lembrar que, de novo de acordo com aquele link, é de “vulgar” que ele chama o Dostoievsky, e de “bruto” que ele chama o Cervantes.

Letra e música

Em algum momento na minha adolescência, eu cheguei a pensar que a carreira de diretor de cinema seria a ideal pra mim. Fui desistindo da ideia aos poucos, em parte porque, na transição do (como chamávamos na época) 1o. pro 2o. Colegial, as aulas de Ciências se abriam em Física, Química e Biologia, e apareceram pra mim uns campos de conhecimento novos e bem interessantes.

Mas voltando à carreira de cineasta. Hoje, passadas algumas décadas, eu consigo entender que o que me atraía nessa área de atuação era que, na minha visão, o cinema eram várias coisas numa só. Era arte, mas também era “ciência”, tecnologia; e mesmo na arte, ela continha várias artes dentro de si: claro, ela tinha seu aspecto narrativo, e nisso se aproximava da literatura, do teatro; mas era também movimento, como na dança; tinha enquadramentos, cores, luz, filtros, como na pintura, na fotografia, nos quadrinhos; tinha música, na trilha sonora…

Se eu estava certo ou não na minha avaliação, é outro assunto. Meu ponto aqui é: com um pouco mais de persistência, eu teria percebido, naquela época, que existiam outras formas de expressão que também me atraíam e que também exigiam múltiplas habilidades (se eu teria investido meu tempo nessas formas, de novo, é outro assunto). A música popular, por exemplo — o rock, em particular.

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Falei do rock como podia ter falado, digamos, da MPB. E não como mera hipótese. Eu sei que existe uma entrevista em algum lugar em que o Caetano Veloso se via, quando jovem, começando uma carreira de cineasta, da qual ele desistiu pra se dedicar à música quando ouviu a versão do João Gilberto pra “Chega de Saudade”. Não só isso: segundo o baiano, o Chico Buarque também escolheu se aventurar na carreira musical mais ou menos na mesma época, e impulsionado pela mesma música — a única diferença é que o plano original do carioca era ser escritor.

O Chico, é claro, mais pra frente na sua vida passou um tempo se dedicando exclusivamente às letras, e até ganhou o Camões pela sua produção — não que o Caetano não tenha recebido boa acolhida quando decidiu publicar suas memórias. Meu ponto é que o carioca, quando foi escolher o meio pra se expressar criativamente, ficou com aquele que exigia dois tipos de habilidades (verbal e musical), e foi bem-sucedido.

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Já que falei da MPB. Pra mim foi um belo achado este pedacinho de uma entrevista do baixista Robert DeLeo, mais conhecido como membro da banda de rock Stone Temple Pilots. Como o DeLeo fala no vídeo, ele compôs a melodia de um dos grandes sucessos da banda, “Interstate Love Song” (e uma das minhas músicas favoritas de todos os tempos), no violão, como se fosse uma bossa nova — “você canalizando seu Jobim interior”, nas palavras do entrevistador.

Eu acho notável, por si só, que uma melodia tão suave resulte num rock, se não pesado, certamente barulhento e bem intenso. Igualmente notável, pra mim, é que, entrelaçada com a música, venha uma letra escrita pelo vocalista do grupo, Scott Weiland, que lida com temas tão pesados quanto crises de relacionamento, mentiras, e vício em drogas — a morte do Weiland alguns anos depois, justamente de overdose, acrescenta uma camada de tristeza a toda essa história.

“Interstate Love Song” ilustra um aspecto bastante intrigante da música popular, que é o encontro de impulsos artísticos os quais, honestamente, não têm muito a ver um com o outro. A música usa guitarras pra ligar bossa nova a drogas, mentiras, viagens… de um jeito que, no final das contas, até funciona direitinho.

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Outro dia, graças a um episódio do podcast do Rob Harvilla sobre as músicas mais marcantes dos anos 1990, voltei a ouvir o disco de maior sucesso de uma das minhas bandas favoritas da época, The Verve, com especial atenção à faixa “Catching the Butterfly”. Daí, lendo os comentários no YouTube ao vídeo do grupo tocando essa música, descobri estes versos que sempre passaram despercebidos pra mim:

Oh, a criança interior

Tem formas de cura

Ela me carregou ao longo

Dos meus dias mais escuros.

Também faz pouco tempo, a lista de emails do Ryan Holiday mencionou uma música do grupo Florence + the Machine, que tem os versos:

É assim que é?

É assim que sempre foi?

Existir encarando o sofrimento e a morte?

E de alguma forma ainda continuar cantando?

Como eu disse, eu sou fã de The Verve; já da Florence, conheço muito pouco, mas ainda que eu conhecesse a música, provavelmente não teria percebido a letra. Meu ponto é que pro “consumidor” de música popular, assim como o “criador”, a experiência também exige mais de uma habilidade, se é que podemos chamar assim. Em outras palavras, eu posso ouvir músicas como as que eu citei aqui e só aproveitar a voz, a melodia, a instrumentação, o ritmo, ou o que quer que traga prazer auditivo, e está ótimo (pra ser bem honesto, é o que eu mais faço). Ou posso ir além, prestar atenção ao que é dito, e aproveitar como eu aproveitaria um poema, um conto, ou qualquer outro tipo de texto (extraindo prazer estético, tirando lições de moral etc.). E isso vale, é claro, não só pra The Verve ou pra Florence + the Machine.

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Elton John, explicando por que ele não escreve as letras das músicas dele:

As pessoas me dizem, “sabe o quê? você devia escrever as suas letras, porque você fala bem, é erudito”, e a minha resposta é, Isso é um desserviço às pessoas que realmente escrevem grandes letras, porque não é fácil escrever uma grande letra.

Eu admito que uma fala dessa talvez tenha uma ressonância especial pra mim porque foi do Elton John a primeira fita cassete que eu comprei, e também foi dele meu primeiro CD. E agora eu me ponho a pensar: assim como o João Gilberto estavam pro Chico e pro Caetano, não estaria o Elton John pra mim? Os sinais estavam todos na minha frente, será que eu não poderia ter tomado um rumo diferente na minha vida? (Mesmo olhando do presente, eu sei a resposta. E está tudo ótimo.)

Podando o cânone

Por muitos anos eu ensinei que Freud é essencialmente Shakespeare prosificado. A visão de Freud da psicologia humana é derivada, não totalmente de forma inconsciente, de sua leitura das peças shakespearianas.

Pra aquelas pessoas (meu caso) que gostam de ler mas que sentem uma certa angústia com o número de obras interessantes e/ou importantes ainda a serem lidas — “tantos livros pra ler pra tão pouco tempo!” — este trecho do Cânone Ocidental, do crítico americano Harold Bloom, pode dar um certo alívio. Eu, pelo menos, pensei o seguinte ao me deparar com esse parágrafo: Ótimo, um autor a menos com que me preocupar. (E registre-se que o Bloom tem grande apreço pelo Freud.)

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Graças a uma declaração do inglês Alfred North Whitehead, um dos mais respeitados filósofos do século XX, eu fico tranquilo pra mandar lá pro final da “lista de livros a serem lidos” uma boa parte, se não a grande maioria, dos pensadores que formam a grande tradição filosófica ocidental: Hegel, Schopenhauer, Heidegger, Sartre…

A mais segura caracterização geral da tradição filosófica europeia é de que ela consiste de uma série de notas de rodapé a Platão. Não me refiro ao esquema sistemático de pensamento que estudiosos, de forma discutível, extraíram dos seus escritos. Eu faço alusão à riqueza de ideias gerais espalhadas neles.

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A premissa deste artigo é ótima:

Toda a nossa vida nos disseram que só podemos considerar que somos cultos depois que tivermos lido os Grandes Livros. Nós tentamos. Atravessamos metade da Graça Infinita e metade do resumo de Finnegans Wake. Mas depois de algumas páginas de Casa Desolada, percebemos que nem todos os Grandes Livros envelheceram bem. Alguns são racistas e alguns são machistas, mas a maioria é simplesmente muito, muito chata.

O trecho sobre Tristram Shandy serve como guia na hora de encarar, ou não, textos mais difíceis:

É uma realização importante na história do romance, um lembrete de que a literatura é um experimento em andamento — o que quer dizer que você deve tratá-lo como Dom Quixote e ler só a primeira metade antes de dar por encerrado o serviço. Pode-se admirar as Pirâmides sem ter a necessidade de escalá-las.

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Esta é pra quem não tem tempo, ou disposição, pra ler ficção, e gostaria de priorizar. Perguntaram pro político inglês Disraeli (primeiro-ministro por dois períodos no século XIX) se ele tinha tempo pra ler romances; a resposta dele: “sim, todas as seis, todo ano.”

(Registre-se que talvez ele não tenha sido o autor original da frase, ou que ela nem tenha sido de fato dita por alguém notável. A primeira vez que li o trecho, foi associado a um filósofo inglês. Não importa, ele é ótimo.)

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Um bom lugar pra procurar leituras é ficar atento a recomendações ou menções de autores que já acompanhamos. Isso é algo que eu certamente faço com alguma frequência: fui atrás do James Baldwin, por exemplo, por causa de uma menção elogiosa desse autor num romance do Paul Auster. Mas existe uma outra versão dessa prática, que consiste em não dar bola pra certos escritores que são desprezados por autores de que gostamos. Quando eu vejo o que o Vladimir Nabokov, de quem sou fã, fala do Sartre (“ainda mais horrível que o Camus”), do Pirandello (“nunca me importei com ele”), ou do Freud (“odeio, uma fraude vil”), entre alguns exemplos, fico tranquilo — ainda mais, no caso do austríaco, reforçado pela opinião do Bloom que eu citei lá em cima — pra não sair correndo pra ler qualquer um deles.

O artista como intérprete

E.L. Doctorow, romancista americano:

O historiador vai te dizer o que aconteceu, o romancista vai te dizer qual foi a sensação.

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Numa entrevista de 1988, o brasileiro Caio Fernando Abreu, romancista como o Doctorow, mencionou algo que tinha ouvido do terapeuta dele:

Os escritores, os ficcionistas e os poetas são os biógrafos da emoção. Se alguém, no ano de 2010, quiser saber o que as pessoas sentiam nos anos 80, ele não vai ler Veja, o Estado de São Paulo, o Jornal do Brasil; ele vai pegar a ficção, os poetas. Você tem que estar consciente de que a tua função social é fazer esta biografia do emocional.

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Neste artigo, o Ryan Holiday critica uma série de movimentos que visariam combater o que se convencionou chamar de apropriação cultural — exemplos desses movimentos são o cancelamento de aulas de ioga numa universidade canadense (a prática teria sido apropriada da Índia) e o fechamento de um furgão que vendia tacos em Portland (por se apropriar da culinária mexicana).

Como contraponto, o Holiday oferece a música “The night they drove old Dixie down“, da banda canadense The Band. A música fala da Guerra de Secessão americana do ponto de vista dos Confederados (o lado derrotado, que defendia a escravidão). Além disso, era um tema com o qual nenhum dos músicos tinha qualquer familiaridade: o compositor, Robbie Robertson, escolheu o assunto simplesmente porque achou que soaria bem na voz do baterista Levon Helm (único americano da banda, nascido no sul do país), e precisou recorrer a bibliotecas pra se informar melhor sobre a guerra.

Com todos esses poréns, o artigo se pergunta, por que “The night they drove old Dixie down” não perdeu seu status de grande clássico da música americana?

Meu palpite é que nós damos a Robertson e a The Band um salvo-conduto porque, bem intimamente, sabemos que apropriação cultural — quando bem-feita, quando feita da forma correta — se chama arte… Como escreveu Ralph Gleason na Rolling Stone sobre “The night they drove old Dixie down” em 1969, é quase irreal o quão boa é a música — funciona melhor no registro do custo pessoal da perda daquela causa fracassada do que qualquer livro de história ou fonte primária.

“Nada que eu tenha lido”, diz ele, “trouxe o irresistível senso humano de história que essa música traz… É uma música notável, a estrutura rítmica, a voz de Levon e a linha do baixo e a acentuação da bateria e também as harmonias pesadas e bem coordenadas de Levon, Richard [Manuel] e Rick [Danko] no tema, fazem parecer impossível que não seja um material tradicional transmitido de pai para filho direto daquele inverno de 1865 para nossos dias.”

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Sei muito pouco sobre a série de TV Dr. Who, mas outro dia me apareceu esta cena em que o Vincent van Gogh é levado (através de um mecanismo de viagem do tempo, suponho eu) pra uma galeria de arte dos dias de hoje, onde sua obra é apresentada em destaque e apreciada com grande interesse; perguntam pra um especialista qual é a posição do van Gogh na história da arte.

Para mim, van Gogh é o maior pintor entre todos eles, certamente o “grande pintor” mais popular de todos os tempos, o mais amado. O seu domínio das cores, o mais magnífico. Ele transformou a dor da sua vida atormentada em beleza extática. É fácil retratar a dor, mas usar a sua paixão e a sua dor para retratar o êxtase e a alegria e a magnificência do nosso mundo — nunca ninguém tinha feito isso antes, talvez nunca ninguém faça isso novamente. Na minha cabeça, esse homem estranho e maluco que percorria os campos da Provença foi não somente o maior artista, mas também um dos maiores homens que jamais viveu.

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Encerro com artistas e intérpretes, e com a diferença entre “conhecer” e conhecer. Robin Williams em Gênio Indomável.

Se eu te perguntasse sobre arte, você me falaria tudo sobre todos os livros de arte jamais escritos. Michelangelo? Você sabe muito sobre ele. Sua obra, aspirações políticas, ele e o papa, orientação sexual, todos os trabalhos, certo? Mas te aposto que você não sabe como é o cheiro dentro da Capela Sistina. Você nunca esteve lá e olhou pra aquele teto lindo…

Você é durão. Eu te pergunto sobre guerra, você me joga um Shakespeare, certo? “Mais uma vez rumo à abertura, caros amigos.” Mas você nunca esteve perto de uma. Nunca segurou a cabeça do seu melhor amigo no colo e viu ele dar seu último suspiro, olhando pra você, pedindo ajuda. E se eu te perguntasse sobre amor, você provavelmente me citaria um soneto. Mas você nunca olhou pra uma mulher e se sentiu totalmente vulnerável. Conhecer alguém que poderia te demolir com os olhos. Te fazer sentir como se Deus tivesse colocado um anjo só pra você, que pudesse te resgatar das profundezas do inferno…

Eu te vejo, não vejo um homem confiante, inteligente; vejo um menino arrogante, cagado de medo… Você é órfão, certo? Você acha que eu sei o mínimo sobre o quão dura foi a sua vida, como você se sente, quem você é, porque eu li Oliver Twist? Isso te encapsula?

Pessoalmente, estou pouco me fodendo pra tudo isso porque, sabe o quê? Não consigo aprender nada sobre você que eu possa ler na porra de um livro. A menos que você queira falar sobre você, quem você é. E eu estou fascinado. Estou dentro. Mas você não quer fazer isso, quer, garoto? Você morre de medo sobre o que você poderia dizer. Agora é contigo, rapaz.

O caminho às letras

Eu sei de um professor universitário pra quem perguntaram uma vez por que ele se dedicava a estudar e ensinar literatura, e ficção em particular. O professor não tinha uma resposta definitiva, mas talvez fosse porque a ficção permite, a partir de seres e situações imaginárias, falar de literalmente qualquer coisa.

Ao lembrar que foi a ficção que me deu as primeiras noções sobre taxidermia, latinização de sobrenomes alemães na Idade Média e variáveis aleatórias de Poisson (aqui, aqui e aqui, respectivamente), só pra ficar em alguns exemplos, fica fácil pra mim entender a força desse argumento.

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Neste texto, eu fiz menção a uma nota que o Nassim Taleb deixou no site dele, na qual ele explicava que escrever A Lógica do Cisne Negro foi só um pretexto pra discutir Líbano, Casanova, Dino Buzzati e outros assuntos. O que chama atenção pra outro fato: a diversidade de interesses do Taleb, pra qual ele só encontrou vazão escrevendo um tratado filosófico.

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Um trecho deste livro, que discute a amizade entre os filósofos escoceses David Hume e Adam Smith (ainda que este último seja mais frequentemente considerado um economista):

Quando se vai além do Livro 1 do Tratado [da Natureza Humana] de Hume e do mais famoso punhado de passagens da Riqueza das Nações [de Smith], fica então claro que havia uma grande sobreposição dos interesses de Hume e de Smith, em parte porque ambos estavam interessados em, bem, essencialmente tudo.

Mais adiante, o livro complementa este trecho com outra observação que mexe um pouco com a ideia do Hume como um “filósofo puro” e do Smith como um “mero economista” (pra aqueles que pensam nesses termos):

Ironicamente, veremos que colocar os dois autores lado a lado ajuda a ressaltar a importância das contribuições de Smith para a filosofia moral e a das de Hume para a economia política.

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Na página da Wikipédia do inglês Aldous Huxley, famoso pelo romance Admirável Mundo Novo, aparece um depoimento do irmão dele, Julian:

Acredito que sua cegueira [ele não enxergava de um olho] foi uma bênção disfarçada. Por um lado, acabou com a sua ideia de se dedicar à carreira de médico… O que fazia dele único era seu universalismo. Ele conseguia tornar todo o conhecimento sua província.

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Me pareceu curioso, lendo a biografia da americana Marilyn vos Savant (listada por alguns anos no Guinness como “pessoa com maior QI do mundo”) que ela tenha escolhido como carreira, assim como o Huxley, e com todos os seus evidentes talentos (chegou até a trabalhar com investimentos), justamente as letras.

O artista dentro do crítico

Sabe aquela máxima que diz que todo crítico é um músico frustrado? Por algum motivo ela diz “frustrado”, e não “incompetente”.

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Kurt Vonnegut:

Outro defeito do caráter humano é que todo mundo quer construir e ninguém quer se encarregar da manutenção.

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Eu não acredito em “interpretação incorreta” como uma expressão real no domínio da arte — “você interpretou incorretamente! não foi o que eu quis dizer!” — não, eu interpretei, eu recebi o que você criou, e me fez sentir algo diferente daquilo que você tinha sentido [quando criou sua obra], e eu expressei isso. Eu acho que, antigamente, os críticos costumavam ser muito bons na interpretação e na dissecação e na expressão de injúrias, mas sempre de uma forma artística; agora, eles só correm atrás de chavões, não é a mesma coisa.

Esta constatação do Louis CK sobre o nível atual dos críticos (dita no podcast do Joe Rogan), associada à lucidez dele em perceber que não existe isso de interpretação incorreta, me lembra uma frase que a ensaísta Camille Paglia resgatou pro prefácio original de Personas Sexuais (publicado nesta coletânea):

[O historiador inglês] David Cecil diz, “é raro que os artistas sejam feitos do mesmo tipo de material que os críticos—é por isso que muito da crítica que há por aí seja tão inepta.”

Invertendo os papéis, acho que só mesmo um artista — ou um comediante, no caso — do nível do Louis CK seria capaz de ter essa percepção sobre o que se espera de um crítico.

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Achei no Twitter uma frase do poeta alemão Novalis — o original está aqui:

Quem não é capaz de fazer um poema, também só o julgará negativamente. A genuína crítica requer a aptidão de produzir por si mesmo o produto a ser criticado. O gosto por si só julga apenas negativamente.

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E, já que falei de autores alemães, Goethe:

Existem três tipos de leitores. Um que desfruta sem julgar; outro, que julga sem desfrutar; e um intermediário, que julga desfrutando e desfruta julgando. Este último, na verdade, reproduz uma obra de arte de uma nova maneira. Os membros desta classe de leitores não são numerosos.

A exatidão das Exatas

A cena deste episódio da série The Big Bang Theory começa com uma desavença entre o físico Leonard, um dos protagonistas do programa, e o namorado da vizinha dele, o leigo Zack. Quando o Leonard explica pro Zack que, ao contrário do que este pensa, a figura na capa de uma revista científica é um átomo, e não um planeta, este arremata, “Concordo em discordar — e é isso o que eu adoro na ciência: não existe uma única resposta correta!”

A ideia desta interação era ilustrar um pouco da ignorância do Zack em relação a assuntos científicos. Mas, ainda que a cena se baseie numa imagem da ciência que, em linhas gerais, faça sentido, me parece que a realidade é um pouco mais complicada que isso.

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Uma vez fiz um curso que ensinava técnicas de processamento de imagens — filtros, restauração de imagens, remoção de “ruído” etc. Era um curso não muito aprofundado, uma vez que era frequentado por gente das mais diversas formações (tinha biólogos, geógrafos, artistas gráficos, matemáticos…). Na primeira aula, a professora, doutora em engenharia, propôs um exercício aos alunos: dada uma imagem com alguns círculos e alguns retângulos, como vocês implementariam um programa de computador capaz de contar a quantidade de objetos de cada um desses tipos (círculos e retângulos)? Note-se que ela não pediu o programa de computador, só uma descrição geral do que o programa faria. Depois que cada aluno descreveu seu “programa” (todos diferentes um do outro), a professora concluiu: “Perceberam que não existe uma única forma de resolver um certo problema?”

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O livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do filósofo da ciência Thomas S. Kuhn, é bastante útil, entre outras coisas, pra acabar com essa imagem da ciência como “uma busca nobre e elevada pela compreensão do funcionamento misterioso da natureza”, ou como quer que alguém tenha formulado esse propósito de um cientista. De forma bem, mas bem resumida: segundo o Kuhn, o que um cientista de uma certa área geralmente faz é resolver um jogo, um quebra-cabeça, cujo resultado é mais ou menos conhecido de antemão. Quando as regras do jogo (ou paradigmas, na formulação do Kuhn) começam a não mais servir pra resolver quebra-cabeças dessa área, pode surgir um outro paradigma mais apropriado, que é então adotado (não sem conflitos) pela comunidade de pesquisadores pra resolver quebra-cabeças. Nada de muito “nobre” ou “elevado” nesse processo.

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Do tempo que eu trabalhei com profissionais de Estatística, eu aprendi que eles podem ser separados em duas categorias: os frequentistas e os bayesianos. A discussão sobre o que distingue uma categoria da outra vai longe, mas o que eu queria dizer aqui era o seguinte: eu sempre achei que eu tivesse mais afinidade com os frequentistas — de modo bem sucinto, eles fazem muito poucas suposições a priori sobre os dados que eles querem analisar, ao contrário dos bayesianos. Daí eu achei este vídeo, da criadora da divisão de Inteligência de Decisão da Google, e acabei me identificando mais com os bayesianos: se uma moeda já caiu, mas ela não está visível pra mim, eles dizem que a probabilidade de ela ser coroa é 50%, com o que eu concordo (os frequentistas defendem que essa probabilidade é 100% ou 0%, porque a incerteza já não existe mais).

Qualquer que seja a minha posição nesta questão “frequentistas vs. bayesianos”, o ponto que eu queria trazer era: o que dá pra dizer de uma “ciência exata”, ou de um ramo da matemática, no qual existe todo esse debate sobre qual técnica pra solução de problemas se deve utilizar?

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Formulada no final do século XVIII, a lei de Coulomb foi, como diz a Wikipédia, “essencial para o desenvolvimento do estudo da eletricidade.” O curioso é que, da forma como ela foi apresentada, essa lei seria rejeitada pela comunidade científica dos tempos atuais, pela falta de rigor. Como conta esta história da teoria eletromagnética, o Coulomb só mostrou três medições experimentais pra ilustrar a lei dele (em outras palavras, o gráfico com os dados dele seria desenhado com só três pontos), sendo que um desses três pontos tem uma discrepância de 6% com relação aos valores previstos pela teoria.

Tecnologias e seus usos

Nassim Taleb, comentando uma obra do filósofo nascido na Áustria Karl Popper:

Considere a seguinte propriedade do conhecimento: se você espera saber amanhã com certeza que seu namorado vem te traindo todo esse tempo, então você sabe hoje com certeza que seu namorado está te traindo e vai tomar uma atitude hoje, digamos, pegando uma tesoura e despedaçando com raiva todas as gravatas Ferragamo dele. Você não vai se dizer, Isto é o que eu vou descobrir amanhã, mas hoje é outro assunto, então eu vou ignorar essa informação e aproveitar o meu jantar…

Considere a roda. Se você é um historiador na Idade da Pedra chamado a prever o futuro para um relatório bem abrangente a ser entregue ao chefe da sua tribo, você precisa imaginar a invenção da roda, ou você vai deixar passar boa parte da diversão. Agora, se você consegue profetizar a invenção da roda, você já sabe qual é a forma de uma roda, e por isso sabe como construir uma roda, ou seja, já percorreu boa parte do caminho…

Suponha que você é um acadêmico no Departamento de Previsões de uma universidade medieval, especializado em projeções da história futura (para nossos propósitos, o remoto século XX). Você precisaria se deparar com as invenções da máquina a vapor, da eletricidade, da bomba atômica, e da internet, assim como com a instituição das massagens a bordo de aviões e daquela estranha atividade chamada reunião de negócios, na qual homens bem-alimentados, mas sedentários, voluntariamente restringem sua circulação sanguínea com um dispositivo caro chamado gravata.

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Alguém escreveu no Twitter (agora mesmo não consigo achar quem foi) que todas as previsões sobre o impacto na vida das pessoas de ferramentas de inteligência artificial como o ChatGPT parecem ignorar um ponto bastante importante: as possibilidades que se abrem, com essas tecnologias, pra se inventarem distrações novas. Aquele autor deu como exemplo o surgimento da internet: se imaginou que essa invenção permitiria um avanço nos negócios, na ciência, nas interações entre pessoas distantes etc. Não que nada disso não tenha acontecido, mas, olhando da perspectiva dos dias de hoje (2023), como a internet se faz mais presente na nossas vidas? Redes sociais, vídeos cada vez mais curtos, séries de TV, músicas…

Eu acrescentaria o seguinte àquele comentário do Twitter: a utilização de novas tecnologias além dos supostos “nobres objetivos” imaginados pra elas não é necessariamente um fenômeno inédito.

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O historiador James Gleick fala neste livro, entre muitas outras coisas, sobre a invenção do telefone.

A nova engenhoca precisava ser explicada, e isso geralmente começava com uma comparação com o telégrafo. Havia um transmissor e um receptor, e fios os conectavam, e algo era carregado ao longo dos fios na forma de eletricidade. No caso do telefone, esse algo era o som, simplesmente convertido de ondas de pressão no ar para ondas de corrente elétrica. Uma vantagem era aparente: o telefone certamente seria útil para músicos. O próprio [Graham] Bell, viajando [pelos EUA] como empresário da nova tecnologia, encorajou esse modo de pensar, dando demonstrações em salas de concerto, onde orquestras completas e coros tocavam “America” e “Auld Lang Syne” na sua geringonça. Ele encorajou as pessoas a pensarem no telefone como um dispositivo de transmissão de programas, para enviar música e sermões através de longas distâncias, trazendo a sala de concerto e a igreja para dentro da sala de estar. A maior parte dos jornais e dos comentaristas concordou. Isso é o que acontece quando se analisa uma tecnologia abstratamente. Tão logo as pessoas puseram as mãos nos telefones, elas descobriram o que fazer. Elas conversaram.

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Justiça seja feita: na lista que o Thomas Edison ofereceu de possíveis usos da sua então mais recente invenção (isso em 1878), o fonógrafo, estava incluída “reprodução de música”. É verdade que, na possibilidade que os usos estejam em ordem de importância do ponto de vista do inventor, a música só aparece em quarto lugar, depois de “ditar cartas e outros textos sem precisar de estenógrafo”, “livros falados para cegos” e “ensinar a se expressar”. Acho que não é polêmico dizer que nenhum desses três itens se transformou numa indústria global nas décadas seguintes como o quarto item.

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Um caso diferente é o do cinema. Embora o primeiro filme dos inventores da tecnologia tenha sido uma cena comum do cotidiano — operários saindo de uma fábrica, no que talvez seja um precursor dos atuais documentários — demorou bem pouco pra que alguém percebesse o potencial da nova invenção pra contar histórias, e o surgimento do cinema como arte narrativa foi quase imediato.