Em A Arte Francesa da Guerra, romance de 2011 do francês Alexis Jenni, o narrador se oferece pra reescrever as memórias do ex-soldado Victorien Salagnon em troca de aulas de pintura. Depois de um certo número de aulas — e depois que o Salagnon já contou suas histórias na 2a. Guerra, na Argélia, na Indochina — o narrador pergunta pro seu tutor o que eles vão pintar naquele encontro. A resposta: nada — você vai pintar, só isso.

O que o aluno aprendeu naquela aula foi, segundo o mesmo, a lição mais importante de todas: até aquele momento, ele sempre procurava algum objeto pra pintar; se não lhe diziam qual, ele mesmo procurava algum que servisse, o que muitas vezes não dava resultado, e nada de pintura também. O ex-soldado disse simplesmente pra pintar qualquer coisa: árvores, pedras, reais, imaginárias, não importava — é o que os chineses fazem há séculos, pintando sempre as mesmas pedras inexistentes, as mesmas plantas inexistentes… Não é nem questão de escolha de objeto, basta decidir pintar, e daí pintar.

Eu vejo nessa interação entre o narrador e o Salagnon uma lição que se estende a outros ofícios, outras artes. De vez em quando vejo autores dando conselhos àqueles que querem seguir essa carreira — me vem à cabeça de imediato o que o E.L. Doctorow disse, que planejar escrever, rascunhar, pesquisar, falar a respeito, nada disso é escrever, só escrever é, de fato, escrever. E acho que esse aviso do Doctorow combina bem com a lição do Salagnon: alguém poderia dizer, OK, só escrever é escrever mesmo, mas escrever o quê? A verdade é que não importa, o que importa é escrever.

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Pessoas bastante religiosas, ou pelo menos que acreditam firmemente em Deus, dispõem de uma facilidade que o resto da população não tem, que é aquela solução simples pra explicar fenômenos sem relação causa-efeito nítida: Foi Deus que me disse pra chutar na bola desse jeito, Foi Deus que me fez ganhar tantas vezes seguidas a loteria, Foi Deus que segurou o avião segundos antes dele bater no oceano… Quem não se encaixa nesse grupo acaba sendo bastante criativo (pra quem olha de fora) na hora de racionalizar eventos que acontecem nas suas vidas, abrindo mão de divindades, alinhamentos de estrelas, acaso, princípios da incerteza ou sei lá quais mecanismos. A autora chilena Isabel Allende, quando joga uma moeda pra decidir uma ação, diz no momento em que a moeda está lá no alto: Paula, decide por mim. (Paula é a filha dela já falecida.) Quando estavam gravando um depoimento do Paul McCartney pra um documentário sobre os Beatles, e ele estava falando justamente falando do John Lennon, surgiu de repente uma faixa de luz azul na sala, atrapalhando a entrevista. A resposta do Paul: Ei, é o John passando por aí! Não precisa cortar, pode deixar…

Digo tudo isso pra lembrar outra cena do romance, em que o narrador está sentado numa praça, cabisbaixo, enquanto umas crianças estão brincando. Uma delas se aproxima e pergunta por que ele está triste. O narrador diz que é por pensar na morte, em todos os mortos que ficaram pra trás. A criança olha, acena com a cabeça, e responde: Não dá pra viver se você não pensar na morte. E volta correndo pra brincar com os amiguinhos.

O que impacta o narrador é a conexão criada com uma criança desconhecida, de uns quatro anos, que diz algo que ela mesma bem provavelmente nem entende. Como se dá essa conexão? Segundo o narrador, é pela palavra, pela língua francesa, que atravessa a criança sem que ela perceba; pelas virtudes da língua, todos eles se entendem. Ou seja, o francês seria algo acima das pessoas que, de alguma forma difícil de expressar, os une.

Concluindo: quando uma mensagem de impacto chega a nós e não sabemos como isso se dá, e não queremos atribuir isso a Deus, podemos dizer que é o idioma que carrega essa mensagem. (Não digo que é a única explicação ou mesmo a melhor, mas é tão válida quanto as outras.)

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Num dos trechos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador-protagonista fala da morte, aos 19 anos, da Nhã-Loló, sobrinha do cunhado e candidata a noiva dele. O Brás Cubas conta como o Damasceno, pai da Nhã-Loló, contava com o apoio dos amigos na hora do enterro — ele tinha mandado oitenta convites, doze apareceram — e que esse “castigo dos homens” causado pelo abandono só tornava o “castigo de Deus” da perda da filha ainda pior. Ainda tentaram argumentar com ele que só foram os que de fato se importavam com a família, e os outros só iriam pra constar, e pra falar sobre política, negócios etc. E o Damasceno: Mas viessem!

Eu trago aqui esta interação não só pelo impacto emocional dela, mas também porque ela remete a meu modo de ver esse momento tão crítico nas relações humanas, que é o falecimento. Não sou imaginativo o suficiente pra dar valor a frases como Deixemos os mortos descansar em paz, ou Vamos honrar o legado do falecido, ou Acho que fulana gostaria que fizéssemos tal coisa (se ela estivesse aqui). Isso não me impede de tratar com delicadeza alguém que já morreu — mas por outros motivos. Não me parece gentil difamar um falecido, mas não porque “ele merece descansar em paz” ou por “honrar seu legado”; meu pensamento é que, qualquer coisa que o indivíduo tenha sido, ele também foi um pai, um filho, um marido, um irmão, um amigo… que podem estar vivos e podem ler/ver/ouvir o que se diz sobre ele. Mesma coisa quanto ir a um velório. Não se trata de estar junto ao homenageado, que nem vai saber que você está lá, mas (como o Machado de Assis captou tão bem) de estar do lado das pessoas, vivas, sofrendo pela partida.

E com isso volto à Arte Francesa da Guerra. Em certo ponto, o narrador fala do incômodo que ele sentiu assistindo a Falcão Negro em Perigo, filme americano de 2001. O filme, baseado em eventos reais, trata de forças especiais americanas que devem capturar certos indivíduos em Mogadíscio (Somália), do subsequente fracasso da operação, e do resgate dos soldados que ficaram pelo caminho. Um aspecto do filme especialmente assustador foi o final, em que um texto aparece na tela com o nome de cada um dos dezenove americanos mortos e o anúncio de que pelo menos mil somalianos morreram. Um número que, segundo o livro, não choca, porque a razão de mortos de lado a lado em guerras “anti-coloniais” é essa mesma, pelo menos dez pra um. E não choca porque, sendo curto e grosso, os mortos do lado de lá não contam. E claro, se os mortos do lado de lá são vistos assim, cada um é livre pra conjecturar como não são vistos os vivos — evidências não faltam.

Mas o narrador não encerra o assunto nessa nota pessimista. Ele abre espaço pra fazer uma homenagem ao Paul Teitgen, funcionário público que foi servir na Argélia dos anos 1950, então sob domínio do exército francês. Naquela época os militares franceses estavam bastante ativos na repressão à população árabe, na tentativa de extinguir o terrorismo que dominava a região; qualquer recurso era tolerado, fosse invasão de casa, prisão arbitrária, interrogatório, tortura, “desaparecimento”… O grande feito do Teitgen foi garantir que, a cada árabe apreendido por um francês, uma “alocação a residência” fosse assinada pelo francês (e pelo Teitgen também), indicando o destino do árabe: interrogatório, cadeia, fossa etc. Assim, o burocrata mantinha listas dos capturados, dos presos, dos soltos, comparava as diferenças, confrontava os oficiais — ah, estes aqui? pois é, desapareceram, foi isso. E, talvez o mais importante: ele contava o número de mortos, e sabia os nomes deles.

Alguém poderia dizer que isso não fez diferença no rumo da história da Argélia, ou daqueles mortos em particular. São só pedaços de papel, no final das contas. Mas, de novo, não é esse o ponto. O gesto do Teitgen não é só pros que se foram (se é que isso faz sentido), ou pros seus próprios compatriotas (ao mostrar que é possível preservar sua humanidade no meio de uma carnificina), mas pros que ficaram, e que têm que lidar com a dor da perda. Esses contam e têm nome, tanto quanto os que partiram.

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