Como lembra o Alex Castro, a posição de uma pessoa branca de classe média no Brasil do começo do século XXI talvez não seja muito diferente daquela de um alemão médio (ou alemã média) vivendo normalmente sua vida, indiferente à opressão nazista cada vez maior no seu entorno.

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Um trecho das memórias do Bob Dylan, em que ele descreve um momento do mundo, e dele mesmo, no começo da década de 1960, lá pelo auge das tensões da Guerra Fria:

A França tinha entrado na Era Atômica e movimentos estavam brotando para banir as bombas, francesas, americanas, russas e tudo o mais, mas esse movimento também tinha seus detratores. Psiquiatras renomados diziam que algumas dessas pessoas que alegavam ser contra testes nucleares eram o tipo de pessoa, ainda que laica, capaz de acreditar no Juízo Final — se as bombas nucleares fossem banidas, elas seriam privadas do seu senso de destruição altamente reconfortante… Havia artigos sobre coisas como fobias modernas com nomes em latim, medo de flores, medo do escuro, de altura, medo de atravessar pontes, de cobras, medo de envelhecer, medo de nuvens. Qualquer coisinha podia dar medo. Meu grande medo era de que o meu violão ficasse desafinado.

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No dia 2 de agosto de 1914, o autor Franz Kafka (então cidadão do Império Austro-Húngaro) escreveu no seu diário:

A Alemanha declarou guerra à Rússia. Fui nadar à tarde.

(A “guerra” da nota é a Primeira Guerra Mundial.)

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O Dylan, pouco tempo depois dos momentos registrados pela citação aí de cima, deu um jeito de demonstrar, na sua arte, que estava atento a outras angústias que não envolvessem só o violão dele. Do Kafka, eu diria o seguinte: ele morreu em 1924, e os pais, no começo da década de 1930. Já as três irmãs (os dois irmãos que ele teve morreram logo na infância) foram todas vítimas do nazismo, tendo morrido ou em guetos para judeus ou em campos de concentração. Ou seja, se o Kafka tivesse sido poupado pela tuberculose, e se olharmos as duas guerras mundiais como um único evento (como faz o historiador inglês Eric Hobsbawm, entre outros), possivelmente teria experimentado os tristes efeitos de longo prazo do que aconteceu naquele dia de 1914 quando foi nadar.

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Quando eu penso na Primeira Guerra Mundial — e pra não parecer que estou criticando uma possível falta de visão do Kafka — me vem à cabeça este alerta do Nassim Taleb:

O historiador Niall Ferguson mostrou que, apesar de todos os relatos típicos da preparação para a Grande Guerra, que descrevem “tensões crescentes” e “crises cada vez mais intensas”, o conflito veio como uma surpresa. Apenas em retrospecto ele foi visto como inevitável por historiadores olhando para trás. Ferguson usou um argumento empírico engenhoso para comprovar sua tese: ele olhou para os preços de títulos imperiais, que normalmente incluem a antecipação dos investidores das necessidades de financiamento dos governos e perdem valor quando há expectativa de conflitos, já que guerras causam déficits severos. Mas os preços dos títulos não exprimiram a antecipação para a guerra.

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